Por Arthur Fontgaland e Zenaida Laura-Rodriguez
Do ProMigra
Na noite do último sábado (12), aproximadamente 80 famílias migrantes e refugiadas ocuparam um edifício abandonado na região central de São Paulo. Organizada pelo Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB), a ocupação foi logo interceptada com violência pela Polícia Militar. No momento os habitantes buscam diálogo com a Prefeitura para garantir a moradia.
O edifício ocupado é chamado pelos novos moradores de “Ocupação de Imigrantes Jean-Jacques Dessalines”, referência direta a um dos líderes responsáveis pela libertação e independência do Haiti no início do século XIX. A forte presença de famílias haitianas no movimento convive com outras nacionalidades, como bolivianos, venezuelanos e holandeses. Há também migrantes internos vindo de estados do Norte e Nordeste do país.
Em comum, as famílias ocupadas possuem trajetórias marcada por despejos, alta na inflação do aluguel e a luta por moradia. A maioria delas é formada por trabalhadoras e trabalhadores informais que já habitavam a região central. Assim como grande parte de quem vive no país no último ano, elas viram sua renda encolher com a pandemia que tornou ainda mais difícil pagar os aluguéis das pensões ou dos cortiços que habitavam. Este foi um dos principais motivos para que esta população migrante se articulasse às atividades do MLP no centro de São Paulo em busca de uma solução imediata.
O edifício ocupado, segundo relatou a organização do movimento, está vinculado a Sérgio Saccab, herdeiro que possui dezenas de imóveis na cidade. Fechado a mais de uma década, o prédio apresenta irregularidades fiscais, como débito com a prefeitura de São Paulo. A Rede Brasil Atual apurou que são mais de R$ 140 mil em dívidas de Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) referentes a esta propriedade, conforme consta no portal da Secretaria Municipal da Fazenda.
Desde o último fim de semana, no entanto, o edifício deixou de ser apenas uma propriedade à serviço da especulação imobiliária e passou a abrigar trabalhadores e trabalhadoras migrantes em busca de dignidade. Com grande presença negra, a Ocupação reivindica anda a história e a memória do bairro da Liberdade, território tão preto quanto asiático. Os moradores demandam, sobretudo, o direito social básico à moradia garantido pela Constituição.
Para contar a história e a luta das famílias da ocupação, o MLB produziu um documentário que retrata a trajetória dos moradores e explica de que forma é construída uma ocupação. O lançamento da produção ocorreu na última terça-feira (15) e foi transmitido por meio do YouTube e do Facebook.
Direito à moradia e pandemia
No atual contexto da pandemia, ter uma residência e estar em casa significa, mais do que nunca, uma medida fundamental para garantir saúde familiar e coletiva. Contudo, o que se observa na prática é o aumento da violação do direito à moradia no cenário de crise sanitária.
Dados do Tribunal de Justiça de São Paulo obtidos pelo UOL, por exemplo, apontam que foram registradas 8.417 ações de despejo só nos três primeiros meses deste ano. No mesmo período no ano passado, foram 4.696. Este número aumentou de modo exponencial a partir de dezembro de 2020, quando o TJ-SP passou a registrar mais de 2.000 ações semelhantes mensalmente. A principal motivação para os pedidos de despejo é a falta de pagamento dos alugueis que, por sua vez, tem ocorrido com mais frequência nos lares em função da perda de renda e desemprego agravados pela pandemia.
As remoções coletivas e ações de reintegração de posse também se mantiveram constantes no último ano. A Campanha Despejo Zero, organizada por diversos movimentos sociais, estima que mais de 72 mil famílias no Brasil estão ameaçadas de despejo. Outras 12 mil famílias já foram despejadas durante a crise sanitária.
No Estado de São Paulo, mais de 8 mil famílias encontram-se ameaçadas de remoção apenas no primeiro trimestre de 2021, diz o Observatório das Remoções ligado ao LabCidade. Foram 354 removidas neste mesmo período. Muitas das remoções tendem a partir das prefeituras municipais e foram realizadas com violência policial e sem ordem judicial, em alguns casos.
Recentemente, o Supremo Tribunal Federal decidiu pela suspensão por seis meses de ordens ou medidas de despejos de locais que estavam habitados antes do dia 20 de março de 2020, período em que o país entrou em estado de calamidade pública. Conforme a decisão, ficam impossibilitadas “medidas administrativas ou judiciais que resultem em despejos, desocupações, remoções forçadas ou reintegrações de posse de natureza coletiva em imóveis que sirvam de moradia ou que representem área produtiva pelo trabalho individual ou familiar de populações vulneráveis”.
Ainda essa semana entrará em votação no Senado e dará seguimento à suspensão do STF o Projeto de Lei 827/2020. O PL proíbe despejo ou desocupação de imóveis até 31 de dezembro de 2021, com suspensão dos atos praticados desde 20 de março de 2020, excetuando-se casos já concluídos. Iniciativas semelhantes têm ocorrido nos estados. A Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo aprovou no início de junho um PL que suspende por três meses mandados de reintegração de posse, despejos e remoções judiciais ou extrajudiciais. O texto está sob análise do Executivo. Proposta parecida já foi aprovada pela Câmara dos Deputados, em Brasília e outras tramitam em alguns estados.
Seja via ação direta como na “Ocupação dos Imigrantes Jean-Jacques Dessalines” ou por meio dos mecanismos institucionais, as mobilizações que se observa buscam reparar hoje os danos da não implementação de uma política pública de habitação que esteja ancorada na moradia como um direito de todas as pessoas e não como um produto negociado pelo interesse do mercado.
Como ajudar?
Os moradores da ocupação estão recebendo itens para aquecimento, higiene pessoal e limpeza. Os materiais podem ser entregues no próprio endereço da Ocupação, na Praça Carlos Gomes, 109, Liberdade.
As famílias também aceitam doações via PIX. Essas e outras informações estão detalhadas nas páginas de Facebook e de Instagram da Ocupação dos Imigrantes.
Sobre os autores
Arthur Fontgaland é coordenador do ProMigra e diretor do Instituto Matizes. Zenaida Lauda-Rodriguez é Coordenadora do ProMigra e pesquisadora da RESAMA – Rede Sul Americana para as Migrações Ambientais.