Representante de uma dessas entidades chegou a receber ameaças de morte; até falar em espanhol é motivo para desconfiança e preocupação
Por Rodrigo Passoni
Em São Paulo (SP)
Uma conversa entre integrantes do SJMR (Serviço Jesuíta para Migrantes e Refugiados) e migrantes venezuelanos em Boa Vista teve seu conteúdo distorcido e transformou a instituição – e um de seus integrantes, em especial – em alvo de ameaças e manifestações xenofóbicas em Roraima.
De acordo com o SJMR, o diálogo ocorreu em junho passado, após a desocupação de venezuelanos de uma pousada que estava abandonada, e que os migrantes estavam no local há pelo menos quatro meses. Na ocasião, um representante da ONG orientava sobre como funciona o processo legal de desocupação – que requer uma ordem judicial para ser feito.
No entanto, a conversa foi registrada em vídeo e divulgada nas redes sociais como um suposto incentivo a que venezuelanos invadissem propriedades privadas. De acordo com o Estadão Verifica, serviço do jornal O Estado de São Paulo destinado a desmentir notícias falsas, o representante da ONG teve vazados seu perfil pessoal, telefone e inscrição na OAB (Ordem dos Advogados do Brasil). A SJMR informa ainda que ele começou a receber ameaças de morte.
Em entrevista publicada no jornal Folha de Boa Vista, o principal de Roraima, o presidente da OAB local, Rodolpho Morais, disse que o advogado será submetido ao Conselho de Ética da instituição para avaliar se a orientação dada aos migrantes foi certa ou errada.
Fake news
O dono da página no Facebook chamada “Roraima Sem Censura”, Ezequiel Calegari, escreveu que o representante da ONG foi “diagnosticado pela psiquatria como psicopata” e que “veio para o Estado de Roraima formar quadrilha e e implantar o terror às famílias e cidadãos de bem”.
Dias depois, Calegari publicou um vídeo no qual foi até a sede da SJMR, desferindo ofensas aos funcionários e acusando o representante da ONG que apareceu no vídeo “de ter fugido de medo” de Roraima.
Questionado pelo Estadão Verifica, Calegari disse acreditar que a ONG de fato incentivava invasões de terra. Quando perguntado se sabia da veracidade das acusações contra o representante da entidade, respondeu que “publica as coisas para agradar seus eleitores” – ele é candidato a deputado estadual pelo partido Patriotas e se diz apoiador do presidenciável Jair Bolsonaro (PSL).
Mais tarde, Calegari usou o Roraima Sem Censura para criticar a reportagem, dizendo que suas palavras foram distorcidas e que o jornal paulista “está a serviço da esquerda”.
Apoio
Em nota conjunta, 40 instituições de todo o Brasil e do exterior repudiaram as ameaças ao trabalho do SJMR em Roraima e do representante ameaçado de morte. Também reafirmou apoio e continuidade do trabalho junto aos migrantes venezuelanos.
“Ainda causa rechaço a distorção feita por perfis, em redes sociais, com ameaça a instituições e profissionais que lutam pela execução dos direitos e garantias constitucionais de pessoas mais vulneráveis. Entendemos também que as entidades responsáveis pela realização da reintegração de posse são públicas e respondem à decisão de um Juiz de Direito. Qualquer outra forma de intervenção forçada frente a estas populações é arbitrariamente constituição de crime, desrespeito às leis republicanas e aos princípios fundantes do Estado Democrático de Direito”, aponta trecho da nota, disponível na íntegra neste link
A sede do SJMR chegou a ficar fechada por alguns dias devido à polêmica, mas vem normalizando suas atividades.
Tensão
O episódio relacionado à ONG está longe de ser um fato isolado. Na verdade, reflete uma tensão que tende a crescer em Roraima com a aproximação das eleições – e a persistência da crise na Venezuela e do fluxo de migrantes em direção ao Estado, que deve ser um dos assuntos principais na campanha.
Outras entidades e seus colaboradores também relatam dificuldades para fazer o trabalho assistencial junto aos migrantes devido a esse cenário.
Sob anonimato, por temer represálias como as sofridas pelo integrante do SJMR, um outro representante de entidade que trabalha com os venezuelanos disse que a xenofobia tem se tornado cada vez mais presente. “Tivemos de parar de usar camisetas [das ONGs] no trabalho de rua porque somos hostilizados. Falam que estamos ajudando criminosos. Só de falar em espanhol [para atender os migrantes] já torcem o nariz”.
Outro funcionário cita que motoristas do aplicativo Uber em Boa Vista tem se recusado a transportar migrantes venezuelanos. “Eles se negaram a levar [para um dos abrigos para migrantes na cidade] porque os acharam feios e sujos, sendo que estavam ‘apenas’ cansados e doentes”.
Para Valéria*, que vive próximo a um dos abrigos montados pelo Exército e pelo ACNUR (Alto Comissariado da ONU para Refugiados) na zona oeste de Boa Vista, a população local se sente prejudicada por achar que os venezuelanos possuem mais direitos que os brasileiros. No entanto, também reconhece a difícil situação vivida pelos migrantes. “Não é fácil você virar as costas para sua família, amigos, país, e ir para um lugar onde ninguém te conhece e fala uma língua diferente”.
*O sobrenome e profissão da moradora foram omitidos a pedido da entrevista, que teme represálias.
[…] meses. Basta lembrar do prédio queimado em Mucajaí, das hostilidades na praça Simón Bolívar, das ameaças sofridas por uma ONG que apoia migrantes em Boa Vista, por fake news diversas, … A lista é […]