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sexta-feira, novembro 22, 2024

Os impasses na realização do Censo 2021 e o apagão de dados sobre migração

Entre os impasses e consequências da não realização do Censo 2021 no Brasil está o 'apagão' de dados sobre migração na última década

Por Zenaida Lauda-Rodriguez e Arthur Fontgaland

No último dia 28 de abril, o ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Marco Aurélio Mello, por meio de uma decisão monocrática, determinou que o governo federal realize o Censo 2021, ainda neste ano. A decisão acolheu o pedido do governador do Maranhão, Flávio Dino (PCdoB), que solicitava a concretização do estudo após o Ministério da Economia informar que o Censo não seria realizado por falta de orçamento. Esta decisão constitui mais um episódio da investida feita pelo governo federal contra o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), órgão encarregado da realização do Censo.

Pressionado pelo governo federal a cortar custos, em 2019, o IBGE reduziu o questionário do Censo para diminuir em 25% o valor total da pesquisa. Assim, o orçamento previsto passou de R$ 3,4 bilhões para R$ 2 bilhões. Entretanto, durante a tramitação da lei orçamentária no Congresso Nacional, R$ 1,76 bilhão foram cortados pelos parlamentares, enxugando ainda mais o orçamento para apenas R$ 71 milhões de reais. A drástica redução de 96% no orçamento inviabilizou a agenda da contagem populacional que permanece com futuro indeciso.

Os prejuízos da não realização do Censo

O Censo, inicialmente previsto para o 2020 e adiado pela crise do coronavírus, constitui uma pesquisa populacional de envergadura nacional que recolhe dados e informações essenciais para subsidiar políticas públicas em diversas áreas. A contagem populacional registra as características principais de cada cidadão, cada família e cada domicílio em todo o Brasil; é um retrato da população do país, incluindo aquela vinda do estrangeiro. O Censo organiza e sistematiza os dados de maneira detalhada a fim de subsidiar as políticas públicas, a gestão pública e a própria política nos níveis local, regional e federal. Além disso, os dados da pesquisa definem o repasse de verbas por meio dos fundos de participação dos Estados e municípios e dos fundos que destinam recursos à educação e à saúde. A última realização da principal pesquisa censitária no país foi no ano de 2010.

Pela sua grande importância, desde o anúncio dos cortes de orçamento, diversas instituições, grupos de pesquisa e organizações vinculadas à produção de dados do IBGE, entre eles técnicos e especialistas, expressaram sua desconformidade com os cortes anunciados. Em março último, a Associação Brasileira de Estudos Populacionais (ABEP) e os ex-presidentes de do IBGE expressaram seu descontento divulgando cartas abertas em defesa do IBGE e do Censo. A Assibge (Sindicato Nacional de Trabalhadores do IBGE), além de defender a realização do Censo, demandou o seu adiamento para o ano de 2022, em função do agravamento da pandemia do coronavírus no país.

Contudo, as preocupações sobre o Censo não são apenas em relação às insuficiências orçamentárias, mas também diz respeito à redução das perguntas presentes nos questionários a serem aplicados. Em maio de 2019, a ex-presidente do IBGE, Susana Cordeiro Guerra, anunciou que o questionário completo do Censo Demográfico 2020 teria um total de 76 perguntas. Esta mudança representa uma redução em 32% quando comparado ao formulário original, que teria 112 questões. Em relação aos questionários do Censo de 2010, a redução acontece tanto no questionário básico (aplicado a todos os domicílios do país), que passou de 34 a 25 questões; quanto no questionário de amostra (aplicado em aproximadamente 10% dos domicílios), que foi de 102 a 76 questões. Segundo diversos especialistas, a exclusão de perguntas já realizadas em Censos anteriores afetaria alguns grupos específicos, produzindo um “apagão de dados” populacionais. Tamanha descontinuidade de produção de dados fundamentais para uma comparação com resultados passados tende a provocar uma ruptura de séries históricas de estatísticas. Algumas das questões excluídas afetam a obtenção de informações sobre temas como o valor do aluguel, renda dos moradores dentro de um mesmo domicílio, tipo de rede de ensino, características do domicílio, entre outros. Apenas uma seção foi retirada por completo da nova proposta censitária: a da emigração internacional.

O “apagão de dados” censitários sobre migração

Um primeiro aspecto que deve ser ressaltado é que, atualmente, as informações que fundamentam as decisões governamentais estão embasadas em dados já ultrapassados. Em matéria de migração, o Censo de 2010 recolheu dados sobre a migração interna e a imigração internacional contabilizados até esse ano e registrados apenas no questionário de amostra. O questionário básico registrou informações sobre a emigração internacional. Segundo o Relatório Anual OBMigra 2020, devido à crise econômica internacional iniciada em 2007, o contexto demográfico da época evidenciava um incremento da mobilidade humana no cenário sul-sul. No panorama latino-americano, à época da realização do Censo de 2010, havia passado apenas um ano da assinatura do Brasil no Acordo de Residência do Mercosul e Países Associados, aspecto que influenciou na captação da migração oriunda dos países vizinhos. Além disso, os fluxos migratórios de haitianos começavam a chegar ao país ainda de forma incipiente e a corrente imigratória venezuelana ainda não se fazia notar.

A informação sobre a situação dos imigrantes pôde ser complementada em 2015 com a realização da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), encerrada em 2016 e última em sua série, que apresentou resultados de amostras para Brasil, Grandes Regiões, Unidades da Federação e nove Regiões Metropolitanas (Belém, Fortaleza, Recife, Salvador, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo, Curitiba e Porto Alegre). Esta pesquisa recolhia características gerais da população, educação, trabalho, rendimento e habitação, e, com periodicidade variável, outros temas. A PNAD foi substituída pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua), que propicia uma cobertura territorial mais abrangente; entretanto, disponibiliza apenas informações conjunturais trimestrais sobre a força de trabalho em âmbito nacional. Este questionário não inclui perguntas que permitem identificar se o trabalhador é migrante ou não.

Além desta falta de dados sobre as características gerais da população migrante, cabe ressaltar que pela dinâmica deste fenômeno, a maioria das pessoas migrantes residentes no país não possui moradia própria e dependem de moradia alugada. O Censo 2010 revelou que 2,3 milhões de famílias não tinham nenhum rendimento e, ainda assim, precisavam pagar um aluguel no valor de até um salário mínimo. As informações sobre este grupo eram incluídas nas estatísticas de déficit de moradias no Brasil, tomadas como base para formulação de políticas públicas de habitação, como o Minha Casa Minha Vida, criação de novas linhas de crédito para financiamento ou para o planejamento de obras de urbanização. Com o corte do Censo, só será possível saber quantas pessoas pagam aluguel.

Outra modificação no questionário que chama a atenção foi a exclusão da seção sobre Emigração. O Censo 2010 revelou que em todo o Brasil, 3 de cada 1.000 pessoas haviam emigrado, mas em alguns municípios essa proporção passava de 40 em cada 1.000. O Observatório da Migração Internacional de Minas Gerais emitiu um manifesto contra o corte dos quesitos de migração, argumentando que os resultados do Censo 2010 mostraram que o volume de emigrantes reportado era de magnitude equivalente ao de imigrantes captados pelos quesitos do Censo dedicados à imigração. Isto esclareceu a presunção de que o aumento no número de imigrantes seria maior que a dos emigrantes. Outro aspecto apontado no manifesto é a questão da espacialidade dos fluxos e da importância da emigração internacional para algumas regiões do país. Embora em nível nacional o fenômeno aparente ser um evento raro, para muitos municípios ele não é, como acontece na microrregião de Governador Valadares (MG). Além de ajudar a entender as dinâmicas regionais, os dados gerados nesta seção eram usados para projetar o tamanho da população brasileira em anos seguintes, assim como qualificar o fenômeno migratório e identificar características sociodemográficas e econômicas dos domicílios de onde partiram os emigrantes. Essas informações possibilitam, por exemplo, entendermos os aspectos que levaram os indivíduos a deixarem o Brasil.

O argumento principal para justificar estes cortes foi que as informações não contempladas pelo questionário poderiam ser coletadas de outras fontes de informação como registros administrativos relativos à migração. A esse respeito, o manifesto destaca que o único registro atualmente ativo no Brasil sobre saídas de população são as informações do Sistema de Tráfico Internacional (STI) da Delegacia de Polícia Federal (DPF) que registra informações dos postos de fronteira. Entretanto, esta informação deixaria de lado as pessoas que cruzam as fronteiras irregularmente, além de não dar conta de identificar se o indivíduo “capturado” por esses registros tem intenção de morar em outro país. Outro aspecto importante é que o STI mostra o ponto de destino do voo e não necessariamente o local de residência no exterior. Outro argumento utilizado é a possibilidade de aplicação de “big data” na produção estatística destas informações. Entretanto, segundo aponta o manifesto, não há possibilidade imediata de uso desses tipos de informação para gerar estimativas de migração interna e internacional e, menos ainda, caracterizar os migrantes e os processos migratórios.

Visibilizando a situação da população migrante

Não cabe dúvida que frente aos processos de planejamento local e regional é imperativa a necessidade de informação detalhada sobre os fluxos e tendências migratórias até o nível de maior desagregação espacial como são os municípios. Para isso, é necessário que a principal pesquisa e instrumento para coleta destas informações contemple perguntas que possam mostrar com rigor e atualização a situação da população migrante, tanto em âmbito interno quanto internacional. A inclusão de questões relativas à pessoas migrantes no questionário básico, e não apenas no de amostragem, pode viabilizar este objetivo. Na mesma direção, a inclusão de um bloco sobre migrações na PNAD Contínua, contribuiria para acompanhar periodicamente a situação dos trabalhadores migrantes com maiores dados desagregados.

No contexto de crise da pandemia da covid-19 ficou mais do que evidente a importância do conhecimento detalhado das condições de vida dos diferentes grupos populacionais, incluindo os migrantes, um dos mais afetados. Muitos migrantes se dispuseram a retornar a seus países de origem por falta de recursos para moradia e alimentação, inclusive em situação de extrema vulnerabilidade e de fechamento de fronteiras. Nesse contexto, o planejamento e gestão pública demandam decisões políticas responsáveis fundamentadas em informações confiáveis, abrangentes e qualificadas sobre as características da população. O conhecimento demográfico levantado pelo Censo se torna ainda mais central à medida que o planejamento de infraestrutura em saúde com base em dados recentes colabora para o enfrentamento à crise sistêmica gerada pela pandemia. É uma tarefa cidadã demandar do atual governo que este processo, de extrema importância para o desenvolvimento do país, seja realizado em sua plenitude, garantindo não apenas sua aplicação, mas também os cuidados sanitários necessários na coleta de informações.

Sobre os autores

Zenaida Lauda-Rodriguez é Coordenadora do ProMigra e pesquisadora da RESAMA – Rede Sul Americana para as Migrações Ambientais; Arthur Fontgaland é coordenador do ProMigra e diretor do Instituto Matizes


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