O relatório anual da ONG Anistia Internacional, “O Estado Dos Direitos Humanos no Mundo“, reúne análises e informações sobre a situação dos direitos humanos ao redor do mundo, incluindo a questão migratória. O informe de 2022/23 cobre cerca de 156 países e territórios e observa-se um cenário bastante grave e alarmante para os direitos humanos.
Segundo a secretária-Geral da Anistia Internacional, Agnès Callamard, a guerra russa contra a Ucrânia serviu para “desestabilizar ainda mais um sistema internacional multilateral já enfraquecido por décadas de desrespeito impune dos Estados poderosos ao direito internacional”.
A principal conclusão do relatório é a existência de um “padrão duplo” dos países e Estados no que se refere à garantia dos direitos humanos. Como consequência, atesta-se “o fracasso da comunidade internacional em se unir em torno de valores universais aplicados de forma consistente”. Muitas dessas diferenciações estão relacionadas a preconceitos e/ou interesses geopolíticos.
Dois pesos e duas medidas
A resposta incisiva do Ocidente ao ataque da Rússia contra a Ucrânia, por exemplo, contrasta com a “falta de atuação” diante de graves violações de direitos humanos em outras crises, conforme apontado em reportagem do MigraMundo. É o caso do sistema de apartheid consolidado em Israel e nos Territórios Ocupados. Ou ainda, na Arábia Saudita, onde as autoridades estão impondo proibições de viagens a ativistas e jornalistas; e no Egito, onde persistem casos de tortura, desaparecimentos e execuções extrajudiciais.
Fato é que essa discrepância afeta profundamente o deslocamento global, que deve atingir um novo recorde com a marca de 100 milhões de migrantes forçados. Enquanto a União Europeia abriu as portas para os milhares de refugiados ucranianos, o mesmo não foi visto em relação àqueles que fogem da guerra e da repressão no Afeganistão e na Síria. Além disso, entre setembro de 2021 e maio de 2022, os EUA expulsaram mais de 25.000 haitianos, havendo denúncias inclusive de maus-tratos – práticas assentadas no racismo contra pessoas negras. “Esses exemplos confirmaram para o resto do mundo que o apoio do Ocidente aos direitos humanos é seletivo e interesseiro”, defende o relatório.
A Anistia Internacional lembra ainda que, em 2023, a Declaração Universal dos Direitos Humanos completa 75 anos. Uma data que reforça a principal mensagem do informe: “os direitos humanos não podem ser aplicados seletivamente, pois, dessa forma todo o tecido universal é comprometido. Todos os Estados devem revigorar a ordem baseada em regras que beneficiem a todos, em todos os lugares”.
Anistia Internacional aponta violações aos migrantes
No ano de 2022, novos conflitos eclodiram e muitos outros persistiram, iniciando ou reforçando grandes movimentos de refugiados e deslocamentos internos.
O mais divulgado foi, sem dúvida, o fluxo de migrantes ucranianos. Relatório da ONU aponta que mais de 13 milhões de pessoas permanecem longe de suas casas, incluindo quase 8 milhões de refugiados em toda a Europa e mais de 5 milhões de deslocados internos na Ucrânia.
Esse grande contingente no continente europeu se deve à política de portas abertas da União Europeia. Uma abordagem muito diferente da que foi adotada em relação às pessoas que buscavam proteção, mas que não eram dessa região, evidenciando “uma discriminação e um racismo profundos”.
A Anistia reforça a responsabilidade dos governos em respeitar o direito internacional humanitário, investigar as denúncias e processar os suspeitos de responsabilidade. Contudo, foram verificadas sérias violações em diversos países. No norte da África, migrantes forçados foram submetidos a devoluções sumárias e forçadas. No Oriente Médio, as autoridades libanesas ampliaram os chamados “retornos voluntários” de pessoas da Síria. E nas Américas, a ausência de sistemas robustos de proteção internacional manteve em situação de vulnerabilidade um número cada vez maior de pessoas que fugiam da violência e outras crises.
Diante desse contexto, a ONG atesta que é dever de todos os governos salvaguardar os migrantes “sem usar dois pesos e duas medidas no tratamento de pessoas que buscam proteção”.
Panorama da migração nas Américas
Nas Américas, a situação mais alarmante continua a ser a da Venezuela. A Plataforma Regional de Coordenação Interagencial para Refugiados e Migrantes da Venezuela (R4V) estimou que 7,13 milhões de venezuelanos deixaram seu país, e 84% dessas pessoas buscaram proteção em 17 países da América Latina e do Caribe.
No entanto, os desafios não se restringem à Venezuela. O UNICEF declarou que mais de 5.000 crianças cruzaram o Tampão de Darién, uma área de selva entre a Colômbia e o Panamá. O número de pessoas que deixaram Cuba e o Haiti também aumentou significativamente em comparação com os últimos anos. Além disso, a falta de sistemas robustos de proteção internacional continuou a deixar refugiados e migrantes desprotegidos na Argentina, Canadá, Chile, Colômbia, EUA, México, Peru e Trinidad e Tobago.
Em colaboração com o governo mexicano, os Estados Unidos mantém ativo o Protocolo de Proteção aos Migrantes e o Título 42 do Código dos EUA – que infringem o princípio de não-devolução. O resultado é uma grave violação a dezenas de milhares de requerentes de asilo que foram expulsos para o México, onde corriam perigo. Ao mesmo tempo, o governo estadunidense seguiu aplicando um sistema de detenção em massa de migrantes, com financiamento suficiente para deter 34.000 pessoas por dia em 2022. As autoridades mexicanas detiveram pelo menos 281.149 pessoas em centros de detenção de migrantes superlotados e deportaram pelo menos 98.299 pessoas. A maioria, migrantes da América Central, incluindo milhares de crianças desacompanhadas.
Trinidad e Tobago continuou sendo um dos poucos países das Américas que não conta com uma legislação nacional sobre asilo. A ONU expressou preocupação com as devoluções sumárias, detenções desumanas e deportações de requerentes de asilo venezuelanos por parte das autoridades.
No Peru, o sistema de processamento de pedidos de asilo continuou suspenso. No Chile, as autoridades reiniciaram a expulsão imediata de pessoas estrangeiras sem avaliar se necessitavam de proteção internacional ou os riscos que enfrentariam se retornassem. Na Argentina, as autoridades não aprovaram regulamentos para permitir que requerentes de asilo e refugiados tenham maior acesso a direitos básicos, como educação e saúde.
Diante dessas violações, a Anistia exige que as autoridades interrompam as deportações ilegais, abstenham-se de deter refugiados e migrantes e garantam proteção internacional a eles.