Por Luciano Caires Jr.
Há nove meses atrás, o MigraMundo tratou de explicar o contexto dos ataques protagonizados por grupos armados não-estatais em Cabo Delgado, uma das províncias de Moçambique mais afetadas pela pobreza extrema, localizada no extremo nordeste do país. Até pouquíssimo tempo atrás, o local era um destino turístico para quem buscava atividades como mergulho e pesca esportiva nas belas ilhas moçambicanas. O cenário passou a mudar em outubro de 2017, quando Cabo Delgado passou a presenciar ataques terroristas que já tiraram mais de 2,5 mil vidas desde seu início. Além delas, mais de 700 mil pessoas vivem o drama diário de fugir dos confrontos, o que acaba agravando ainda mais a crise humanitária na região quanto as necessidades humanas básicas da população.
Segundo as agências da ONU, desses 700 mil deslocados, quase a metade (46%) são crianças. Quando consideradas também as mulheres, o grupo sobe para 75%.
Por conta da guerra, boa parte da fuga dos moçambicanos costuma ocorrer pelo mar ou pela floresta. A busca é por assentamentos ou locais onde possam encontrar segurança através da ajuda de voluntários de agências humanitárias, ou até mesmo, encontrando novos grupos de refugiados.
As condições se tornam cada vez mais insustentáveis e insuficientes. As superlotações nos abrigos aumentam ainda mais os riscos de doenças como cólera e a própria COVID-19, além da escassez de alimentos e até mesmo de água potável. No ano passado, a taxa nacional de pobreza em Moçambique chegou a 63,7% por conta da pandemia da COVID-19, segundo o Banco Africano de Desenvolvimento (BAD), afetando ao todo quase 1 milhão de pessoas.
A situação em Moçambique é a pior desde o fim da guerra civil do país, que chegou ao seu fim em 1992.
A Matriz de Monitoria de Deslocamentos da OIM (Organização Internacional para as Migrações) faz o registro dos deslocados diariamente. Para apoiar os esforços que a crise humanitária em Cabo Delgado necessita, a OIM requer US$21,7 milhões através do Plano de Resposta Humanitária ainda em 2021. Contudo, o plano geral que ainda planeja garantir o pós-crise mais que dobra essa quantidade recursos para US$58 milhões.
Ataques terroristas
Um dos momentos mais agravantes da crise desde seu início ocorreu em 24 de março deste ano, quando o embate entre terroristas e as tropas do governo de Moçambique em Palma deixaram dezenas de mortos e aproximadamente 50 mil deslocados. O ataque à uma das cidades mais promissoras do país causou danos instantâneos, mas também em uma visão de longo prazo para a região. A petrolífera francesa Total suspendeu suas atividades em Palma, atrapalhando a recuperação a curto prazo de uma das cidades que mais poderia ter empresas em Moçambique. A retirada da Total afeta diretamente o acesso a vagas de emprego neste momento, e principalmente em um futuro pós-ataques dos terroristas, visto que Palma era também a província com o maior projeto de gás natural de todo o continente africano.
O ataque a Palma não é apenas uma coincidência, já que outras regiões litorâneas têm sido os alvos prediletos dos terroristas, como Mocímboa da Praia, Macomia e Nangade. A tomada desses locais é feita para dificultar o acesso à capital Pemba, como apontou o historiador Yussuf Adam, em entrevista à Deutsche Welle. “Controlando Mocímboa da Praia, a ligação por estrada com o distrito de Palma saindo de Pemba fica cortada, a única hipótese para ir à Palma é via barco ou avião. Dessa forma é possível circular a vontade no Planalto de Mueda, que começa na Mocímboa da Praia, em Palma”.
Os ataques em Cabo Delgado são realizados pelo grupo terrorista fundamentalista islâmico al-Shabaab, que possui aproximadamente 4 mil integrantes. Além das mortes já registradas, se torna incontrolável a soma dos casos de violência sexual contra mulheres em todos os episódios de invasões as regiões moçambicanas. Por mais que o nome do grupo seja semelhante ao que costuma ter práticas terroristas na Somália, não há registros de relação entre eles. Contudo, é de conhecimento uma associação com o Daesh, nome pelo qual o autointitulado grupo Estado Islâmico é conhecido em países árabes. .O grupo terrorista já fez questão de divulgar materiais de atentados cometidos em território moçambicano, reivindicando também alguns deles, como o de Palma, por exemplo.
Especialistas acreditam que a movimentação terrorista deste grupo começou bem antes do primeiro ataque em 2017, há aproximadamente uma década antes. O motivo real do conflito ainda gera debates.
Movimentação internacional
Alguns episódios recentes podem ser promissores na luta por ajuda à situação em Cabo Delgado. Um deles foi o encontro de Emmanuel Macron e Cyril Ramaphosa, presidentes de França e África do Sul, respectivamente. O presidente francês se encontrou com Ramaphosa em sua visita ao país sul-africano para debater temas de interesse de ambos os países. Contudo, uma das pautas tratadas foi a crise humanitária moçambicana. A intenção é fortalecer os laços para convencer o presidente de Moçambique, Filipe Nyusi, a aceitar uma intervenção militar externa em seu território, visando o fim da guerra..
Uma semana após o ataque em Palma, no entanto, o presidente moçambicano fez questão de diminuir o ato terrorista: “Foi mais um ataque. Não foi maior do que tantos outros que tivemos, mas tem esse impacto por ter sido na periferia dos projetos em curso naquela província”, disse ele em um evento no posto administrativo da Ponta d’Ouro, segundo a Deutsche Welle.
“Não percamos o foco, não fiquemos atrapalhados. Vamos abordar o inimigo como temos estado a abordar, com alguma contundência, como as Forças de Defesa e Segurança estão a fazer, porque a falta de concentração é o que os nossos inimigos internos e externos querem. Nós temos que nos concentrar, abraçarmo-nos e avançarmos. Temos estado, segundo a segundo, a seguir o trabalho que os jovens no terreno estão a fazer”, completou o estadista.
Mais recentemente, o presidente da União Europeia, Charles Michel, se encontrou com Nyusi no último dia 7, prometendo “apoio concreto em uma abordagem integrada” a Moçambique.
Falando ainda de impactos futuros, muitos já começam a demonstrar preocupação com a negligência apresentada à um número cada vez maior de deslocados. Adriano Nuvunga, diretor da ONG CDD (Centro para a Democracia e Desenvolvimento), ressalta que o aumento dos ataques e a falta de resposta contra a crise em Cabo Delgado pode afetar os jovens da região: “a insatisfação esteve na origem da situação e isso pode contribuir para que, num futuro breve, mais jovens possam estar em situação de vulnerabilidade e por isso possam ser facilmente recrutáveis para ingressarem as fileiras dos terroristas”, afirmou o diretor, em entrevista à Deutsche Welle.
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