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sábado, dezembro 21, 2024

Venezuelanos em Roraima enfrentam saturação em serviços de acolhimento e atendimento

Pessoas ouvidas pelo MigraMundo relatam temor de que se repitam cenas de violência contra venezuelanos, como em agosto de 2018 em Pacaraima

O fluxo migratório de venezuelanos ao Brasil voltou a se intensificar nos últimos meses, depois da reabertura da fronteira no final de junho. E com ele ficaram ainda mais evidentes as dificuldades enfrentadas pelos migrantes e pela entidades responsáveis pelos serviços de acolhimento em Roraima, principal porta de entrada no Brasil.

A fronteira brasileira com a Venezuela, na cidade de Pacaraima (RR), ficou fechada por mais de um ano, desde março de 2020 até junho deste ano, através de portarias que alegavam motivos sanitários devido à pandemia. Nesse período, a entrada de migrantes e solicitantes de refúgio foi restringida. Aqueles que entrassem de maneira irregular não poderiam conseguir seus documentos ou solicitar refúgio e, inclusive, poderiam sofrer com a deportação sumária. A medida, que viola os tratados internacionais de refúgio, ainda é alvo de questionamentos da sociedade civil e da Justiça.

Fluxo migratório de venezuelanos

Segundo dados da Plataforma de Coordenação Interagencial para Refugiados e Migrantes da Venezuela (R4V) existem mais de cinco milhões de imigrantes e refugiados venezuelanos espalhados pelo mundo, sendo que quatro milhões continuam na América Latina ou Caribe. No Brasil, estão 261.441, o que coloca o país como o quinto maior destino dessa população em migração — atrás de Colômbia, Peru, Equador e Chile.

São pessoas que já estavam em situação de vulnerabilidade em seu país e que a migração como uma estratégia de sobrevivência, explica Irmã Maria do Carmo dos Santos Gonçalves, diretora e pesquisadora do Centro Scalabriniano de Estudos Migratórios (CSEM). “São migrações forçadas pelo contexto. Não é só uma migração econômica, é uma migração forçada por uma crise que, de fato, o país enfrenta hoje”, relata. 

Com a reabertura da fronteira a partir de 23 de junho, a cidade e o estado acompanharam uma chegada acentuada de venezuelanos, enquanto não houve adequação das estruturas para atender essa população. 

Além disso, todos os que entraram por “trochas” — caminhos irregulares pela mata — durante mais de um ano, quando a fronteira estava fechada, só agora podem buscar órgãos oficiais para a regularização de seus documentos. Assim, a quantidade de pessoas que necessitam de atendimento é muito maior à capacidade de atendimento existente hoje.

Segundo levantamento da Organização Internacional para as Migrações (OIM) referente a agosto, há 2.065 migrantes desabrigados em Pacaraima, diante de 17 pessoas nessas condições em julho.

Falta de estrutura

Pacaraima é uma cidade de passagem. De lá, os imigrantes e refugiados aguardam seus documentos para seguirem para Boa Vista ou participarem da interiorização para outras regiões do Brasil. Mas, alguns chegam a ficar por semanas em abrigos ou em situação de rua na cidade, esperando a regularização e a interiorização. E falta estrutura na cidade para garantir um apoio melhor, aponta Irmã do Carmo, que vê a situação dos desabrigados como consequência da pouca capacidade dos abrigos frente a quantidade de pessoas. 

Além dos dois abrigos da Operação Acolhida, o BV-8 e o Janokoida, um levantamento da Organização Internacional para as Migrações (OIM) aponta que existem outras 17 ocupações espontâneas, criadas por instituições ou por lideranças comunitárias da região. Mesmo assim, não é o suficiente para abrigar todos. 

Irmã Maria, que esteve na cidade para uma pesquisa do projeto “Reconstruindo vidas nas fronteiras”, trabalho articulado pelo CSEM, conta que os abrigos superaram a capacidade de acolhimento. “Mesmo os das instituições da sociedade civil não conseguem se adequar para alojar todos, porque falta financiamento para aumentar as capacidades e, também, porque o número de pessoas na cidade aumentou muito”, relata. 

A situação em Roraima

De acordo com os dados da OIM, em Pacaraima, em junho, havia 71 migrantes em situação de rua, enquanto em setembro, na cidade, mais de 2.300 pessoas se encontravam nessas condições. Outros 1.600 migrantes estão em ocupações públicas, muitas vezes, espaços e edificações inacabadas em situação de precariedade. Em setembro, na cidade tinham 4.225 venezuelanos desabrigados, incluindo pessoas em maior situação de vulnerabilidade, como grávidas, crianças, idosos e pessoas com dificuldade de locomoção/deficiência física. 

Em Boa Vista, capital com 13 estruturas da Operação Acolhida, 1.803 migrantes estão desabrigados, sendo 825 pessoas no Posto de recepção e apoio (PRA) na rodoviária e 122 em situação de rua. 

O presidente Jair Bolsonaro visitou, no final de setembro, abrigos da Operação Acolhida em Boa Vista, mas desistiu de ir à Pacaraima.  Em uma live propagada, via Facebook, Bolsonaro afirmou que o Brasil é um “país que tem profundo respeito pelo sofrimento dos outros” e que trabalha para “acolher e integrar” os venezuelanos.

Para Alba Gonzalez, jornalista e venezuelana no Brasil há seis anos, o Brasil consegue acolher os imigrantes, mas é necessária uma melhora em toda a infraestrutura para atendê-los de maneira mais adequada. Assim, é preciso que se amplie principalmente alojamentos e a capacidade de atendimento, mas aponta também que se deve pensar para além do assistencialismo e buscar maneiras concretas de integrar essas pessoas na sociedade com estabilidade econômica. 

“A lei não é o suficiente. Ela é ótima, mas falta estabelecer uma política nacional de migração e refúgio que de respaldo as ações.”, acrescenta a Irmã.

Barracas usdas por venezuelanos nas proximidades da rodoviária de Boa Vista (RR). Pandemia agravou situação de vulnerabilidade da comunidade migrante do país vizinho. (Foto: DPU)
Barracas usdas por venezuelanos nas proximidades da rodoviária de Boa Vista (RR). Pandemia agravou situação de vulnerabilidade da comunidade migrante do país vizinho. (Foto: DPU)

Reações

Em agosto de 2018, uma tentativa de assalto realizada por um venezuelano em Pacaraima desencadeou uma reação violenta da população local contra os imigrantes de forma geral. Dezenas deles foram perseguidos, agredidos e tiveram seus pertences queimados, além de empurrados para o lado venezuelano da fronteira. Durante o ato, brasileiros cantavam o hino nacional, em uma demonstração distorcida de patriotismo.

Evitar a repetição de situações como essa é uma preocupação latente junto à sociedade civil que atua com venezuelanos em Roraima. Mas Irmã Maria vê uma certa tensão e rejeição dos moradores da cidade para com os venezuelanos, algo ainda mais complexo do que um sentimento xenofóbico.

“A insuficiência dos serviços na cidade afeta a população brasileira que reside lá, e isso pode levar a um sentimento de animosidade para com os imigrantes”, explica. A religiosa ressalta ainda que a cidade já não tinha muitas estruturas, e que o cenário piora com a quantidade de pessoas chegando.

Já Gonzalez aponta que o fato de serem “estrangeiros e pobres” causa uma certa rejeição na sociedade brasileira, mas que é um preconceito a ser desconstruído para que as duas populações consigam conviver em equilíbrio. A jornalista lembra que não são só os venezuelanos que são beneficiados ao se mudarem para o Brasil, a sociedade brasileira também ganha muito com o encontro de culturas.

“A inserção social dos imigrantes precisa ser feita de forma mais ordenada”, conclui. 

Redes de solidariedade

A presença de voluntários e da sociedade civil é um elemento primordial para garantia de serviços e direitos aos imigrantes em Roraima. Além disso, os próprios imigrantes tentam se ajudar sempre que possível. 

“Apesar de tudo, vimos muita resiliência e boa vontade entre imigrantes para ajudar uns aos outros. Existe uma grande rede de articulação dos migrantes querendo se ajudar”, relata a Irmã Maria. Ela aponta que há um protagonismo dos migrantes diante a situação, mesmo em um contexto de vulnerabilidade.

É o caso de Vicky Marquez, que saiu da Venezuela em 2016. Chegou por meio da fronteira em Pacaraima e hoje, após passar pelo processo de interiorização, mora em Curitiba. Ela usa de suas redes sociais e grupos em aplicativos de conversa para formar uma “comunidade de apoio” a migrantes que chegam ou que querem chegar ao país. 

Marquez conta que quando saiu da Venezuela, não tinha tanto conhecimento sobre a migração e os documentos necessários aqui no Brasil, e por isso, passou por muitas dificuldades. Por isso, resolveu ajudar outros migrantes, que assim como ela, estão chegando ao país.

“A experiência que eu passei, não quero que os outros passem”, desabafa.

Toda a informação publicada em suas redes sociais, em grupos ou orientações individuais que ela passa são realizadas de maneira gratuita e voluntaria, buscando ajudar as pessoas a se adaptarem ou superarem as dificuldades. 


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