Por Guilherme Silva Pires de Freitas e Felipe Antonio Honorato
Devido às barreiras impostas pelo norte global à migração indocumentada de cidadãos do sul global, atualmente os fluxos migratórios intra-regionais no sul global são maiores e mais significativos que os fluxos entre o sul e o norte global: dentre os forçosamente deslocados no mundo, mais de 38 milhões deles permanecem deslocados internamente em seus países de origem e 86% dos refugiados do mundo, ou seja, 13,9 milhões de pessoas, encontram abrigo em países em desenvolvimento (FRELICK; KYSEL; PODKUL, 2016). Ainda assim, países e regiões do norte global, com destaque para União Européia (UE), EUA e Austrália, têm criado crescentes barreiras que impedem migrantes do sul global de atingirem seus territórios ou desencadearem, de qualquer forma, obrigações de proteção.
O que é externalização de fronteiras?
A externalização de controles migratórios ou externalização de fronteiras refere-se a ações governamentais extraterritoriais para impedir que imigrantes entrem nas jurisdições legais ou territórios de países ou regiões de destino ou os tornem legalmente inadmissíveis sem considerar individualmente os méritos de suas reivindicações de proteção (FRELICK; KYSEL; PODKUL, 2016). Tais práticas se concretizam através do engajamento estatal unilateral, bilateral e multilateral, bem como, muitas vezes, ocorre também o recrutamento de atores privados (FRELICK; KYSEL; PODKUL, 2016).
A externalização ocorre de diversas formas: por meio de políticas migratórias formalizadas e regimes de vistos; por meio de iniciativas políticas bilaterais e multilaterais entre países; através de práticas ad hoc (FRELICK; KYSEL; PODKUL, 2016). As políticas e práticas de externalização podem diretamente prevenir a entrada de imigrantes em um território ou ter um impacto indireto nos fluxos migratórios (FRELICK; KYSEL; PODKUL, 2016). Os países terceiros envolvidos na prevenção de movimentos de migrantes e requerentes de asilo são encorajados a impedir que essas pessoas entrem em seus territórios ou a apreendê-los e devolvê-los às suas regiões de origem (FRELICK; KYSEL; PODKUL, 2016). Grande parte desse envolvimento público ocorre no contexto dos esforços transnacionais de controle do crime por parte dos Estados, direcionados a combater o tráfico humano ou o contrabando de pessoas (FRELICK; KYSEL; PODKUL, 2016).
Como políticas migratórias têm ocupado cada vez mais espaço na agenda pública, a externalização é muitas vezes enganosamente enquadrada como um tema de segurança e / ou um esforço humanitário para salvar vidas, ocultando sua real finalidade: estratégia de contenção e controle da imigração (FRELICK; KYSEL; PODKUL, 2016).
Frelick, Kysel e Podkul (2016) destacam uma “cruel” contradição: diversos países que adotaram procedimentos para avaliar os pedidos de proteção de requerentes de asilo que respeitam os direitos humanos nos últimos anos, estabeleceram, simultaneamente, barreiras que impedem os solicitantes de atingirem seus territórios ou desencadearem, de qualquer forma, obrigações de proteção. Ao direcionar os fluxos migratórios para países terceiros, a externalização influencia a natureza e a duração das obrigações legais de cada Estado, bem como a determinação de qual governo nacional é o encarregado pela salvaguarda dos direitos básicos de cada grupo de imigrantes (FRELICK; KYSEL; PODKUL, 2016).
A externalização de fronteiras feita pela Austrália
A Austrália tem uma população de 25,8 milhões de habitantes e de acordo com o Censo do país, cerca de 7,6 milhões são imigrantes (AUSTRALIAN BUREAU OF STATISTICS, 2021). Os quase 30% da população nascida no exterior somados ao número de descendentes de imigrantes, fazem da Austrália um dos Estados mais multiculturais do mundo. Ao longo de sua história, o país sempre recebeu grandes fluxos migratórios oriundos de diversas partes do mundo, principalmente da Europa e Ásia. Porém, nem todos estes imigrantes que chegaram ou que tentam chegar ao território são bem-vindos.
Desde setembro de 2001, o país adotou uma política de externalização para o controle de imigração, chamada de “Solução do Pacífico”. Esta ação, inspirada em uma política semelhante dos Estados Unidos, autorizou a marinha australiana a efetuar detenções de imigrantes em alto mar (FRELICK; KYSEL; PODKUL, 2016). A controversa política migratória teve início após um navio norueguês resgatar um grupo de imigrantes em alto mar e tentar desembarcá-los em segurança na Ilha Christmas, território australiano. O governo da Austrália negou e deteve os imigrantes. Após semanas de impasse, foi definido que a chegada marítima não autorizada de requerentes de asilo não poderia ser feita em qualquer local de seu território (FRELICK; KYSEL; PODKUL, 2016).
Esta ação de deter imigrantes que tentavam chegar à Austrália em alto mar através do Oceano Pacífico e impedi-los de solicitar asilo, foi se tornando cada vez mais frequente por parte do governo australiano. A medida é válida apenas para aqueles que tentam chegar ao país através do mar. Os requerentes de asilo que o fazem por via aérea, podem aguardar o desfecho de seus processos em solo australiano. Uma nota emitida pelo Asylum Seeker Resource Center, maior organização de direitos humanos da Austrália, em junho de 2023, informou que o centro de detenção para imigrantes no pequeno país insular de Nauru havia sido desativado após uma década (ASYLUM SEEKER RESOURCE CENTER, 2023). Estima-se que mais de 3 mil pessoas passaram pelo local.
Além de Nauru, os australianos passaram a transferir estes imigrantes para outros países vizinhos como Papua Nova Guiné, onde essas pessoas ficam confinadas em campos de refugiados. As autoridades de imigração da Austrália utilizam a estratégia não visando conceder asilo sob a lei australiana, mas sim considerá-los como refugiados reconhecidos para reassentamento e se aproveitando que Nauru e Papua Nova Guiné não têm leis e estruturas adequadas para fornecer proteção a pessoas em situação de deslocamento forçado (FRELICK; KYSEL; PODKUL, 2016).
Mudanças recentes na legislação australiana deram ao Ministro da Imigração e Proteção de Fronteiras poderes especiais para deter pessoas em alto mar, fazer as embarcações retornar de onde vieram e enviá-las para outros países com possibilidades muito limitadas de revisão judicial (FRELICK; KYSEL; PODKUL, 2016). O governo do país já tentou firmar acordos de externalização com outros países, como Malásia, Indonésia, Sri Lanka e Camboja, mas a situação segue sem solução devido a diversos fatores burocráticos, como as despesas do envio destes imigrantes para outros países e as legislações migratórias vigentes nestes Estados. Alguns países desenvolvidos como Estados Unidos e Nova Zelândia já se ofereceram para reassentar alguns desses imigrantes.
Sobre os autores
Guilherme Silva Pires de Freitas e Felipe Antonio Honorato são doutorandos no Programa de Pós-graduação em Mudança Social e Participação Política da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH – USP). Já publicaram diversos trabalhos juntos, em sites e revistas acadêmicas como Africa at LSE Blog, A Different View (IAPSS), Observatório da Discriminação Racial no Futebol e Cadernos de África Contemporânea. Seus trabalhos envolvem temas relacionados à imigração, história de África e esportes.
Referências
ASYLUM SEEKER RESOURCE CENTER. Refugees evacuated from Nauru after a decade, 80 people remain in PNG. Asylum Seeker Resource Center, jun. 2023. Disponível em: <https://asrc.org.au/2023/06/25/refugees-off-nauru/>. Acesso em: 01 ago. 2023.
AUSTRALIAN BUREAU OF STATISTICS. Migration, Australia. Australian Bureau of Statistics, apr. 2021. Disponível em: <https://www.abs.gov.au/statistics/people/population/migration-australia/2019-20>. Acesso em: 01 ago. 2023.
FRELICK, Bill; KYSEL, Ian M.; PODKUL, Jennifer. The impact of externalization of migration controls on the rights of asylum seekers and other migrants. Journal on Migration and Human Security, v. 4, n. 4, p. 190-220, 2016. Disponível em: < https://journals.sagepub.com/doi/10.1177/233150241600400402 >. Acesso em: 08 abr. 2023.