Por Isabela Mendonça Moreira
Do ProMigra
“Nunca se esqueça que basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados. Esses direitos não são permanentes. Você terá que manter-se vigilante durante toda a sua vida.”
Simone de Beauvoir.
Em meados de setembro de 2020, notícias acerca de esterilizações compulsórias em mulheres imigrantes nos EUA vazaram. Uma enfermeira que atuava na Geórgia, em um centro de detenção de imigrantes, reportou a denúncia que será investigada pelo Serviço de Migração. Foi revelado que mulheres imigrantes, ao apresentarem queixas como “cólicas intensas”, eram submetidas a cirurgias para a remoção do útero (histerectomia) e outros órgãos reprodutivos sem consentimento. O corpo dessas mulheres, portanto, representam a “terra de ninguém”, a ser manipulada livremente, como um experimento.
As políticas migratórias do governo Trump há tempos apontam para o mesmo sentido: a xenofobia institucional. Seja através da lei que separou recentemente crianças de suas famílias que adentraram o território estadunidense pela fronteira mexicana, seja através de seus discursos carregados de preconceitos.
No entanto, o presente caso não envolve somente a xenofobia institucional contra imigrantes que, per se, transbordam vulnerabilidade. O alvo deste ataque são mulheres imigrantes, que tiveram seus direitos reprodutivos violados.
A definição de direitos reprodutivos foi estabelecida na Conferência Mundial sobre a Mulher (ONU, Beijing, 1995), e está inclusa no hall de direitos humanos das mulheres, como “o direito de controle e decisão, de forma livre e responsável, sobre questões relacionadas à sexualidade, incluindo-se a saúde sexual e reprodutiva, livre de coerção, discriminação e violência”. A definição, formulada em 1995, já era contemplada por dispositivos da Convenção de Belém do Pará (Convenção para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher), publicada em 1994, que protegiam a integridade física, mental e moral das mulheres, dentre outros direitos. Não surpreende, portanto, que os Estados Unidos da América não tenham ratificado a Convenção até hoje. Conjugadamente, os EUA tampouco ratificaram o Pacto Global para uma Migração Segura, Ordenada e Regular (ONU, 2018), que também preza pela proteção das mulheres considerando o gênero como fator gerador de discriminação e vulnerabilidade.
Logo, a denúncia da enfermeira escancara a violação de direitos humanos reprodutivos das mulheres que, coercitivamente e, por vezes sem saber o que estava acontecendo, foram submetidas à remoção de seus órgãos reprodutivos, tendo a integridade física violada e o direito ao planejamento familiar também.
A notícia perturbadora torna necessária uma visita ao passado estadunidense que no século XX promoveu políticas de eugenia, respaldadas por lei, esterilizando latino-americanas. A descoberta dessa política foi feita pela professora Alexandra Minna Stern, da Universidade de Michigan, e por Natalie Lira, estudante de pós-graduação em instituições psiquiátricas da Califórnia. Segundo o estudo, mais de 60 mil esterilizações compulsórias foram realizadas na Califórnia, onde um terço dos procedimentos foi praticado. Neste estado, cerca de 25% dos pacientes eram latinos, e em sua maioria mulheres latinas.
Por fim, resta claro que a política xenófoba estadunidense se repete com o passar dos anos — seja legalmente, seja sigilosamente. As políticas de Trump não revelam apenas que as portas do país se fecham mais a cada dia: elas escancaram que a liberdade de fachada do free country é condicionada à nacionalidade, e que a população latina feminina que por lá se encontrar deverá se adequar ao seu papel de experimento indesejado.
Enquanto os Estados Unidos violam direitos humanos e se esquivam de responsabilidades internacionais através da não ratificação de tratados importantes como o Pacto de San José da Costa Rica, nos resta aguardar que as investigações do Serviço de Migração estadunidense sejam conduzidas com seriedade para evitar que outras mulheres imigrantes passem por atrocidades semelhantes. Do contrário, não conseguiremos evitar que a cada crise política, econômica ou religiosa, direitos femininos retrocedam.
*Isabela Mendonça Moreira é graduanda em Direito pela Universidade de São Paulo e pela Université Lumière Lyon 2. Membra do ProMigra – Projeto de Promoção dos Direitos de Migrantes da Faculdade de Direito da USP e co-fundadora do GEF-VO – Grupo de Empoderamento Feminino (Violência Obstétrica) da Faculdade de Direito da USP.
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