Depois de meses de reveses, os descendentes de italianos no exterior, incluindo o Brasil, enfim tiveram uma vítória. A Corte Constitucional da Itália, o equivalente no país ao Supremo Tribunal Federal brasileiro, declarou nesta quinta-feira (31.jul) que a Lei de 1992 continua válida para pedidos de reconhecimento de cidadania italana feitos antes da Lei nº. 36/2025. A medida, que entrou em vigor em março deste ano e foi ratificada pelo Parlamento dois meses depois, limitou esse direito a apenas duas gerações – filhos e netos.
O parecer da Corte foi emitido em resposta a pedidos feitos por quatro tribunais locais – Milão, Florença, Roma e Bolonha – antes da publicação do decreto do governo italiano que restringiu a cidadania por descendência. Todos eles continham questionamentos quanto à ausência de limitação de gerações da antiga legislação.
Com a decisão, os processos que estavam parados nesses tribunais há meses à espera de um posicionamento da Corte Constitucional voltarão a ser julgados. E a decisão precisa levar em conta a legislação vigente até o começo do ano, de reconhecer a cidadania a todos os que provem ascendência italiana.
Embora a decisão da Corte Constitucional não altere o decreto em vigor desde março, que limitou a concessão da cidadania italiana, ela é vista como um exemplo do retrocesso e dos abusos que a atual normativa representa, abrindo espaço para contestações na esfera judicial. Os magistrados entenderam que cabe ao Parlamento a eventual decisão de intervir na questão da cidadania, enquanto cabe à Corte verificar a constitucionalidade das referidas normas.
O decreto-lei que mudou as normas para concessão de cidadania foi apelidado de “Decreto Tajani” pela oposição, pelo fato do atual ministro das Relações Exteriores, Antonio Tajani, ter sido o idealizador da medida. Em março passado, quando foi promulgado pelo governo, ele afirmou que o objetivo era valorizar a cidadania italiana e evitar abusos e fraudes, além de aliviar os consulados e prefeituras italianas de processar milhares de pedidos que chegam todos os anos. Atualmente, ao menos 60 mil solicitações estão em análise.
“A nacionalidade não pode ser um instrumento para poder viajar para Miami com um passaporte europeu”, afirmou Tajani, em fala que pegou mal junto à diáspora italiana no exterior.
Repercussão
A decisão da Corte suprema italiana foi celebrada no Brasil por diferentes atores ligados à comunidade ítalo-brasileira, que se manifestaram de forma pública pelas redes sociais
“Essa decisão é de fundamental importância porque estabelece que a transmissão da cidadania acontece ao nascer e que, portanto, valerá sempre a lei em vigor no momento do nascimento de cada indivíduo na linha de ascendência. Assim sendo, fica protegida a transmissão da cidadania italiana de geração a geração, desde o imigrante italiano até o último requerente”, ressalta a advogada ítalo-brasileira Gabriela Rotunno, CEO da Rotunno Cidadania.
Rotunno pondera que pela via administrativa os efeitos das modificações introduzidas pelo chamado “Decreto Tajani” continuam válidas. Por outro lado, aponta que a sentença emitida pela Corte suprema italiana traz argumentos ainda mais sólidos que servirão para evidenciar que quem nasceu antes do Decreto é cidadão italiano desde o nascimento.
“Foi feita Justiça! A Corte afirmou de forma cristalina que o pressuposto constitutivo da cidadania é o status de filho de cidadão italiano e que essa aquisição se dá a TITOLO ORIGINARIO (ou seja, desde o nascimento). E reforça o que já havia sido estabelecido pela Corte di Cassazione: a cidadania baseada no vínculo de filiação tem caráter permanente e é imprescritível, podendo ser reivindicada a qualquer tempo tendo em base a simples prova de ser filho de um cidadão italiano”, comentou o genealogista e sociólogo Daniel Taddone, que também é ex-conselheiro no CGIE (Consiglio Generale degli Italiani all’Estero).
Representantes do meio político também se manifestaram. O senador Fabio Porta, do Partido Democrático (e de oposição ao governo de Giorgia Meloni), apontou que a decisão da Corte italiana deixou claro que o processo legal foi atropelado pelas medidas impostas pela atual gestão. Ele ainda ressaltou a importência de a comunidade de descendentes de italianos se mobilizar em defesa de seus direitos.
“Considerando o recurso à decretação de urgência e a consequente forte e grave limitação das prerrogativas parlamentares, a Corte assinala de maneira autorizada, ainda que indireta, a forma irregular com a qual o governo italiano decidiu intervir no tema [cidadania italiana], ademais na véspera de uma sentença tão importante”.
A ex-deputada ítalo-brasileira Renata Bueno, fundadora e diretora do Instituto Cidadania Italiana, apontou que “essa decisão histórica fortalece o direito dos descentes de italianos no mundo todo, especialmente na América Latina, trazendo mais segurança jurídica e esperança para quem busca o reconhecimento da cidadania por sangue”.
De 1870 a 1920, cerca de 1,4 milhão de italianos migraram para o Brasil, muitos fugindo da pobreza, segundo estimativas oficiais. A Embaixada da Itália projeta que há mais de 30 milhões de descendentes de italianos no Brasil, sendo 20 milhões apenas no Estado de São Paulo. Cerca de 730 mil pessoas são cidadãs italianas.
Na Argentina, o número de reconhecimentos passou de cerca de 20 mil em 2023 para 30 mil em 2024. No Brasil, o total aumentou de 14 mil para 20 mil no mesmo período.
Outros debates sobre cidadania italiana
A decisão da Corte Constitucional da Itália deve esquentar ainda mais o já acalorado debate que ocorre no país europeu sobre direito e concessão da cidadania italiana.
Um dos pontos em discussão é o chamado Ius Scholae, uma reforma que permitiria a concessão de cidadania local a não-italianos após a conclusão de 10 anos de escolaridade obrigatória na Itália. Esse debate ganhou força após os Jogos Olímpicos de 2024, no qual a seleção italiana feminina de vôlei obteve uma inédita medalha de ouro. E um dos principais nomes do time é Paola Egonu, filha de imigrantes nigerianos e nascida na Itália, mas que só obteve a cidadania local já durante a adolescência.
Outro assunto em debate diz respeito a um projeto de lei em tramitação no Parlamento italianos pode impedir que cônjuges que residem fora da Itália obtenham a cidadania por matrimônio e ainda aumentar o tempo de espera para aqueles que vivem em solo italiano. Atualmente, quem reside na Itália pode solicitá-la após dois anos de união, enquanto para quem vive no exterior, o prazo é de três anos. Ambos os períodos são reduzidos pela metade caso o casal tenha filhos.
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