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quinta-feira, novembro 21, 2024

Crise na Ucrânia é exemplo de acolhida seletiva e da migração usada como instrumento político

Pesquisadores ouvidos pelo MigraMundo destacam contradições na resposta humanitária e na abordagem da migração forçada dos ucranianos por parte da comunidadae internacional

Já passa de 3 milhões o total de pessoas colocadas na condição de refugiadas em razão da guerra na Ucrânia, especialmente mulheres e crianças, segundo o Alto Comissariaado da ONU para Refugiados. Além disso, outros milhões de habitantes do país europeu sofrem como deslocados forçados dentro do próprio país. Por outro lado, a rápida resposta humanitária dada pela Europa ao conflito, embora elogiada, contrasta de longe com a postura adotada por boa parte das nações do continente diante de outras crises humanitárias recentes. E essa reação ajuda a entender não só o uso político da crise humanitária envolvendo a guerra quanto o histórico racial na região.

Um bom exemplo é a Polônia. O mesmo país que hoje absorve mais da metade dos ucranianos que fogem da invasão promovida pela Rússia sob o governo de Vladimir Putin, poucas semanas antes adotava medidas duras para coibir a entrada de refugiados de países do Oriente Médio que tentavam chegar a seu território a partir da fronteira com Belarus. Com um governo considerado conservador, tem uma postura restritiva a respeito de migrações e foi um dos países que não aderiram ao Pacto Global para a Migração, firmado em dezembro de 2018, como uma forma de se tentar obter uma resposta global à questão migratória, tornando-a regular, segura e ordenada.

”Nós acreditamos que aqui, na Polônia, as nossas regras, as nossas leis de soberania sobre as fronteiras e o nosso controle migratório são a nossa prioridade absoluta”, afirmou o primeiro-ministro polonês, Mateusz Morawiecki ao anunciar que não assinaria o Pacto da ONU.

Situação semelhante é notada em relação à Hungria, que sob o governo do premiê Viktor Orbán se notabilizou pelo discurso anti-imigração e que atualmente vem recebendo parte dos ucranianos que fogem do conflito.

Uso político

A coordenadora de pesquisa do InterAgency Institute, Ana Paula Rodriguez, comentou que os fluxos migratórios podem ser ou não mais acolhidos, a depender da situação geopolítica envolvida e da comoção gerada junto à comunidade internacional.

“Neste caso, especificamente, a União Europeia garante uma boa resposta aos pares, bem como utiliza dessa inflexão na sua política externa em matéria de migrações para estar em lado oposto à Rússia”, comenta.

O fato de o conflito envolver um grande potência como a Rússia é um fator que contribui ainda para que a questão sobre a Ucrânia render um maior destaque, assim como a dimensão da resposta internacional.

“A dinâmica Rússia versus Ocidente casa muito com a ideia de que estamos de braços abertos porque a Rússia quer pereseguir. A forma com a qual estamos vendo a acolhida dos refugiados é positiva, mas a intenção dos governos, em larga escala, é bem menos humanitária”, complementa Flávio Lira, professor-adjunto de Relações Internacionais na Universidade Federal do Pampa, no Rio Grande do Sul.

O interesse político sobre a migração também é destacado pelo professor Gustavo da Frota Simões, da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército. “A migração sempre fez parte do uso político e nesse momento não seria diferente. A Polônia por exemplo recebeu mais refugiados ucranianos nessas últimas semanas do que toda a Europa recebeu de sírios nos últimos anos. Há uma esperança por parte desses Estados de ajuda financeira e militar”.

Por outro lado, caso a situação de guerra se prolongue e os países que hoje abrigam os ucranianos não recebam tal apoio por parte de nações mais ricas, há o risco dessa acolhida e empatia serem trocadas por um sentimento de aversão e ações de repulsa.

“Os esforços de acolhimento precisam ser coletivos, até para não sobrecarregar os países vizinhos – o que
naturalmente pode gerar uma reação xenófoba, um risco que corremos toda vez que a gente tem um fluxo que não é bem gerado. É muito importante que esse esforço seja coletivo, e há países que por
enquanto tem feito quase nada”, explica Maiara Folly, cofundadora e Diretora de Programas da Plataforma CIPÓ, instituto de pesquisa independente que lida com temas de paz, segurança e governança global.

Simões complementa, apontando para o risco desses países receptores, a exemplo do que fez a Turquia em relação à União Europeia com os refugiados a partir da Ásia, como os sírios. “Não descarto a possibilidade de Hungria e Polônia utilizarem os refugiados como mecanismo de persuasão em negociações futuras, ameaçando o restante da Europa de adotarem políticas de incentivo para que os ucranianos saiam de seus territórios, como fez recentemente Belarus com relação a refugiados do Oriente Médio e descrito por Kelly Greenhill como ‘armas de migração em massa'”.

Histórico racial

O racismo é uma questão presente tanto na Ucrânia quanto em outros países europeus – especialmente no leste. E essa característica se mostrou logo nos primeiros dias de conflito, quando vieram à tona as denúncias de imigrantes de países africanos sendo alvo de discriminação na própria Ucrânia ao tentar fugir da guerra, muitos deles sintetizados nas redes sociais pela hashtag #AfricansinUkraine.

A visão racista contra os não-ucranianos também encontrou reflexo na cobertura de meios de comunicação e no discurso de autoridades.

“Estes não são os refugiados com os quais estamos acostumados… estas pessoas são europeias. São pessoas inteligentes, educadas. Esta não é a onda de refugiados a que estamos acostumados, pessoas que não tínhamos certeza sobre sua identidade, pessoas com passado obscuro, que poderiam ter sido até terroristas”, afirmou também o primeiro-ministro da Bulgária, Kiril Petkov, segundo a agência Associated Press.

“A Europa fica evidenciada quando se alega que ela sofre uma crise migratória e se invisibiliza a maior parte de fluxos espalhados no mundo todo. É a velha forma eurocêntrica e não centrada nos indivíduos de análise que ainda estamos impregnados”, ressaltou Ana Paula.

Simões lembra que o racismo é um elemento bastante presente na Europa, inclusive nos países do leste. “Morei na França por um tempo e visitei a maioria dos países europeus ao longo dos anos e pude constatar que o continente europeu como um todo é bem racista. Além disso, o leste europeu tem sofrido com o aumento de partidos e políticos de extrema-direita e os casos de xenofobia não são exclusivos da Europa ocidental”.

Em resposta a essas reações, organizações como o ACNUR e a OIM têm reforçado a necessidade de proteção e acolhimento a todas as pessoas em fuga da guerra na Ucrânia, sem qualquer tipo de distinção.

“Os Estados vizinhos precisam garantir que todos aqueles que estão fugindo da Ucrânia tenham acesso irrestrito ao território, independentemente do status e em consonância com o Direito Internacional Humanitário. Proteção e assistência imediata devem ser fornecidas de maneira não discriminatória e culturalmente apropriada, de acordo com o imperativo humanitário, a todas as pessoas afetadas por conflitos ao longo de sua jornada à segurança”, disse em comunicado público o Diretor Geral da OIM, António Vitorino. 

“Não podemos perder de vista a questão das nuances, de grupos que estão sofrendo ainda mais nesta guerra. Do contrário, não fazemos justiça”, finaliza Lira.

Dar visibilidade a outros casos

Por outro lado, a repercussão da migração de crise gerada pela guerra na Ucrânia também pode indicar caminhos e ações aplicáveis a qualquer contexto.

“Não temos visto nenhuma política de grande porte que dê alternativa de regularização a migrantes, sobretudo aqueles que não se encaixam na definição de refugiados. Então eu acho que a crise
ucraniana oferece uma oportunidade para fortalecer políticas migratórias mais dignas, para refugiados e demais migrantes que não entram nessa condição”, destaca Folly.

Simões também tira lições da crise ucraniana que, segundo ele, podem ajudar a tornar mais conhecidas outras situações de emergência humanitária em curso no mundo, seja na África, Ásia ou outro continente.

“Ao falar do episódio ucraniano, diversas pessoas vieram me procurar para falar mais sobre refugiados de uma maneira geral. Além disso, o ACNUR tem procurado dar maior visibilidade a casos que já eram invisibilizados como os deslocamentos na Etiópia-Eritreia e o Iêmen. Então eu acho que há um potencial grande, se bem utilizado, de dar mais visibilidade a outros deslocamentos e aproveitar essa empatia seletiva com os ucranianos para fomentar mais ações e ‘awareness’ sobre situações pouco divulgadas”.


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