Por Natália de Oliveira Ramos
A vitória da Argentina sobre a França, no último domingo (18), marcou o encerramento da Copa do Mundo de Futebol, disputada neste ano no Qatar. Uma edição que, fora do campo, ficou marcada por, entre outros assuntos, pelos escândalos de abusos e morte de trabalhadores migrantes. Paradoxalmente, a decisão do torneio coincidiu com o Dia Internacional do Migrante, data instituída pelas Nações Unidas para recordar a importância e os desafios daqueles que deixam a terra natal.
Para a última partida, em campo duas seleções bi-campeãs mundiais e com os dois artilheiros da competição: o argentino Lionel Messi e o francês Kylian Mbappé, que também estão na folha de pagamento do Qatar. Isso porque ambos são destaques do Paris Saint-Germain, atual campeão francês e patrimônio do emir do Qatar, Sheik Tamin bin Hamad Al Thani.
O duelo aconteceu no estádio Lusail, próximo a Doha, onde um segurança queniano morreu no último dia 14. O corpo preto caído do oitavo andar era de John Njau Kibue, de 24 anos, uma morte considerada “tragédia anunciada”. Não porque “morrer é parte natural da vida, seja no trabalho ou seja dormindo”, como tentou justificar o CEO da Copa, Nasser Al Khater, mas pelas denúncias de escravidão moderna feitas por grupos de direitos humanos e jornalistas, que tentavam contar os mortos enquanto milhares de migrantes eram alistados em um gigantesco projeto de construção nacional sob temperaturas vulcânicas.
Nenhum trabalhador de colarinho-azul parece ter sido poupado pelo Qatar – e também pela Fifa, organizadora do evento – das longas jornadas de trabalho sem descanso e do atraso – ou falta dele – no pagamento do salário. Mas o acesso às câmeras de vigilância espalhadas por Doha fez do (agora ex) segurança queniano Malcolm Bidali testemunha ocular de abusos negligenciados pela mãe do Emir, Vossa Alteza Moza bint Nasser, figura reconhecida por seu envolvimento em reformas sociais no Oriente Médio.
Do escritório com ar-condicionado, Bidali constatou um comportamento padrão durante todo o verão: para que a rainha pudesse cumprir sua agenda, um time de seguranças permanecia prostrado do lado de fora, o que era proibido por lei. O mesmo aconteceu no ano seguinte. Uma noite, de volta ao alojamento minúsculo, quase claustrofóbico, onde dormiam outros cinco homens, Bidali publicou um artigo sobre o comportamento incoerente da monarca.
Na época, sob o pseudônimo “Noah” – cujo significado prefere não dizer -, ele já vinha alimentando um blog hospedado no site da organização “Migrants Rights”, onde escrevia sobre os abusos dos direitos humanos, racismo e discriminação respaldados pelo Kafala, o sistema que regula a vida de imigrantes no Oriente Médio. A riqueza de detalhes em seus relatos foi fundamental para que a comunidade internacional precionasse Fifa e Qatar sobre acusações de suborno, violações de direitos trabalhistas e mortes.
“O alojamento era caracterizado por beliches, mofo e percevejos”, descreveu Bidali em texto publicado em março do ano passado. E acrescentou: “Oito banheiros para setenta e dois de nós em cada andar. Proporção semelhante com os boxes de banho. Não há água quente durante o inverno…”.
Pela exposição da rainha, as autoridades chegaram até Bidali, que ficou preso entre julho e agosto do ano passado sob acusação de espionagem. De volta ao Quênia, ele busca recursos para o projeto Migrant Defenders, que dirige junto à Aidah, uma ex-doméstica no Reino de Barém (na Ásia Ocidental), também vítima de abusos.
Para o MigraMundo, o ativista queniano fala sobre o período que passou na prisão – onde, segundo ele, teve alguma dignidade, ao contrário do alojamento – as motivações que o levaram a denunciar, a omissão da embaixada do Quênia, e enfatiza: “Nada do que estou dizendo deve estar `off the record`, as pessoas precisam ser responsabilizadas´”.
MigraMundo: Como tem sido o retorno ao Quênia?
Malcolm Bidali: Agora estou bem. Digo agora porque caso minha organização consiga levantar fundos para ajudar imigrantes que queiram sair do Qatar, nós vamos tocar em temas sensíveis e a África é a pior região do planeta em termos de proteção de ativistas. Mas faremos o nosso trabalho para defender imigrantes no Golfo mesmo quando o assunto ´Copa no Qatar´ passar, mesmo quando as câmeras de televisão forem embora.
Para isso você teria que voltar ao Qatar? Aliás, sua entrada seria permitida?
Ao contrário do que as pessoas pensam, não fui deportado, fui embora porque eu quis. Oficialmente, como minha fiança foi paga, eu estava livre para continuar vivendo lá. Não há registro de acusação criminal. Mas sei que se continuasse, estaria sob vigilância contínua. Me conheço, se visse algo de errado teria de dizer algo e seria preso de novo. Quando saí de lá, assinei um NDA (Acordo de não-divulgação), que explicitamente me proibia de contar as coisas que aconteceram no Qatar, mas foi a primeira coisa que fiz quando coloquei meus pés de volta no Quênia. Uma pena que eu não possa voltar, amo aquele lugar e os amigos que fiz por lá, mas que não mantenho contato para não causar problemas para eles (com a justiça qatari).
A magnitude da Copa do Mundo colocou, de fato, luz na situação?
Antes, pode até ser. Mas durante, não. Jornalistas que tentaram reportar os abusos tiveram seus equipamentos confiscados antes mesmo do campeonato começar. Também estão escondendo os imigrantes, não querem que sejam vistos. Eles representam 90% da população, basicamente construíram o Qatar, todas as rodovias, hotéis e estádios. Mas são poucas as pessoas que se importam com eles. Muita gente que é apaixonada por futebol não se inteirou das acusações ou simplesmente não se importa. Porque se você sabe que está indo para um país onde a infraestrutura foi construída com escravidão, como você, como um indivíduo consciente, se sentiria indo a um evento desse tipo? Apesar de tudo, acho que o Qatar deveria ter sediado a Copa, mas não diria o mesmo sobre a Arabia Saudita. Entre os países do Golfo, Qatar lidera em bem-estar e reformas sociais, ainda que projetos não saiam do papel. Em termos de direitos humanos, o que me pergunto é: Por que simplesmente não tentam ser os melhores do Golfo? Seria bom para todo mundo. Mais investimentos, mais trabalho, mais dinheiro. O Qatar poderia ser a Dinamarca do Golfo. Mas não sei dizer, talvez algum internacionalista poderia responder. Mas se eu tivesse que adivinhar porque imigrantes são tratados desta maneira, diria que é por causa de dinheiro. Oferecer boas condições de trabalho é a coisa certa a se fazer, mas custaria muito caro para quem contrata. (Ademais) o sistema Kafala faz com que o trabalhador seja tratado como propriedade, porque faz com que ele sempre esteja em dívida com quem o contrata. Os contratantes pensam que são superiores a nós, porque viemos de um país pobre; que são mais desenvolvidos. Realmente acreditam que estão nos fazendo um favor em nos contratar. Argumentam que estamos melhor no Qatar do que estaríamos em nosso país, o que é verdade até certo ponto, mas nada justifica negar nossos direitos humanos.
Diante da diversidade entre os trabalhadores no Qatar, o tratamento é igualitário?
Há discriminação. Por exemplo, um africano negro, como quenianos e ugandenses, dificilmente terão ascensão no trabalho. Já os marroquinos e egípcios, que têm o tom de pele mais claro, conseguem melhores posições e melhores trabalhos. Para os negros, eles dizem que temos força fisica e que, por isso, podemos aguentar situaçoes adversas. Podemos fazer o mesmo trabalho que pessoas de pele clara, mas nos pagam menos. Outro exemplo: a maioria dos gerentes são asiáticos e só beneficiam as pessoas de sua própria raça.
Sobre os artigos que você escreveu: o uso de celulares e computadores era permitido. Então, não havia, de fato, a preocupação do governo em esconder a realidade do país?
Esse é o ponto. Acho que havia a suposição de que trabalhadores imigrantes iriam permanecer calados e seguindo as regras. Nunca tive a intenção de escrever ou me tornar um ativista. Apenas tentava evitar problemas, terminar meu contrato e voltar para casa, só que eu estava sentindo raiva e frustração, por isso eu fiz o que fiz. Não teve nada a ver com coragem. Aliás, acho que todo mundo pode fazer isso, depende do quanto você é colocado contra a parede.
E o quanto te colocaram contra a parede?
Certa vez, uma das empresas responsáveis pela manutenção dos alojamentos fez uma inspeção e concluiu que estávamos sendo dignamente tratados, o que não era o caso. O local estava apresentável porque os vigias eram informados previamente, deixando o local de acordo com as normas. Antes de publicar os artigos, procurei os responsáveis; criei um e-mail anônimo e escrevi para essas empresas, para os ministros do Trabalho e de Assuntos Interiores, mas recebi apenas uma resposta padrão, dizendo que iriam verificar as reclamações. Então, entrei em contato com a (ONG) Migrants Rights, logo no início da pandemia da Covid-19.
Te prenderam especialmente pelo o que você escreveu sobre a mãe do Emir. Como te trataram na prisão?
A princípio não fui levado para uma prisão comum. Era como uma instalação secreta (usada pelas forças militares como centro de interrogatório). Me disseram que nem o CID (Departamento de Investigação Criminal) não sabia do meu paradeiro. Não sei se era verdade, ou apenas propaganda, mas por duas semanas, ninguém soube onde eu estava.
Ali, estive na solitária, então, tinha meu próprio quarto, meu chuveiro, minha privada, minha cama e ninguém em volta. Mas houve tortura psicológica. Aumentavam e baixavam muito a temperatura, a luz estava sempre acesa, não dava para saber em qual era a parte do dia; queriam me desestabilizar. Acho que fiquei nessa situação por três dias, depois fui transferido de prédio, onde tive acesso à tv e à academia. Uma coisa surpreendente é que a comida na prisão era muito melhor do que a do alojamento. Prisioneiros comem melhor do que imigrantes no Qatar.
Havia mais gente presa?
Acredito que entre 15 e 20 prisioneiros. Não me deixaram saber quem estava na cela ao lado, o que considero outra tática do serviço de inteligência (Qatar State Security Bureau). Era como se eles dissessem: ´você não sabe quem está ai do lado, pode ser um dos seus amigos´. E isso era crível.
Passaram a te tratar melhor quando a comunidade internacional passou a acompanhar o caso?
Acho que sim. A princípio, eles pensaram que eu era um africano que ninguém sentiria a falta se desaparecesse, que sequer fariam perguntas a esse respeito. Sabiam que nem a embaixada (do Quênia no Qatar) se importaria. Aliás, isso eu quero que esteja on the record: a Embaixada do Quênia não se importa com os quenianos no Qatar, os oficiais estão lá passando férias, deveriam ser demitidos. diversas ONGs reconhecidas, com influência midiática, que se esforçaram para me ajudar desde que souberam da minha prisão, até o Parlamento Europeu cobrou respostas sobre o caso. Essas ONGs junto a Organização Internacional do Trabalho (ILO, da ONU) me ajudaram a sair da prisão com a ajuda de advogado e pagamento de fiança (6 mil dólares).
Aqueles que te ajudaram a publicar as denúncias sofreram represálias?
A editora do site Migrant Rights, onde eu estava publicando, não estava no Qatar naquele momento, bem como os ativistas que estavam na Europa. Mas até a publicação sobre a rainha, apenas um amigo próximo sabia que eu era o autor por trás dos artigos. Passei para ele os contatos de ONGs como a Anistia Internacional, caso acontecesse algo comigo. Quando eu fui preso, mandei um “Possible SOS” (Possível perigo, em portugues) por mensagem. Não tinha certeza do que estava acontecendo, até que me mandaram para o Ministério de Interiores. De lá, também enviei minha localização para saberem, ao menos, onde estive pela última vez. Estava preocupado com as pessoas que me enviavam mensagens ou compartilhavam meus artigos, porque o governo as veria como cúmplices. Isso foi realmente o que me perturbou na prisão.