Por Diana Quintas*
Nos mais de 20 anos de experiência com imigração laboral, presenciei a mudança de perfil dos profissionais que vão trabalhar em outros países e dos estrangeiros que vêm ao Brasil. Não existia o nômade digital e, tradicionalmente, a expatriação de profissionais era feita por grandes multinacionais com programas de carreira bem estruturados e o convite para trabalhar em outro país era o objetivo de muitos e a realidade de poucos, já que a decisão era da empresa e significava investimento alto e uma grande aposta naquele talento. Do início da pandemia até hoje, a tendência do nomadismo digital se consolidou e agora demonstra desdobramentos que precisam ser avaliados pela sociedade.
Neste artigo, tratarei de três pontos que julgo urgentes: entender o nomadismo digital e como ele avança; uma certa inversão de papéis de poder entre profissionais e empresas; e o impacto dessa nova realidade para os países e cidades.
Atividade em expansão
Hoje já se estimam 35 milhões de pessoas que adotaram o estilo de vida e até 2035 teremos 1 bilhão de nômades digitais em todo o mundo, segundo o Relatório Global de Tendências Migratórias da Fragomen. A composição deste bilhão será diversa porque o nomadismo digital é um movimento vivo e autônomo, muito independente e nem todas as pessoas que decidem trabalhar remotamente em outro país buscam o visto adequado.
Ou seja, muitas pessoas se declaram nômades digitais porque trabalham remotamente em outro país, mas não necessariamente estão com o visto de nômade digital. Este é um cenário compreensível já que o primeiro visto foi promulgado pela Estônia em 2019 e muitos países ainda estão se adaptando a esta nova realidade.
Do ponto de vista imigratório, um nômade digital é aquele que mora em um país prestando serviços remotos para uma empresa de outro. Não temos ainda 35 milhões de trabalhadores com vistos de nômades digitais, mas essas pessoas estão prestando serviços de forma remota e vivendo em países diferentes da nacionalidade e da sede de seus empregadores ou clientes.
O perfil também é diferente do que se imaginava há poucos anos. A imagem de um jovem com uma mochila em busca de aventuras é bem diferente dos profissionais que solicitam vistos para nômades digitais no mundo hoje. O filtro começa nos requisitos do visto, os candidatos precisam comprovar renda estável e os valores não são baixos, a média salarial exigida pelos países é de US$ 4 mil.
Desde 2022 até agora, entre os vistos emitidos pelo Ministério da Justiça do Brasil para nômades digitais, 51% foram para estrangeiros entre 31 e 40 anos. 22% têm mais de 41 anos e, do total, 73% são homens e 27% mulheres.
Relação entre profissionais e empresas
O nomadismo digital tem mudado aos poucos o cenário laboral. Falando do Brasil, precisamos considerar que nas duas últimas décadas os brasileiros tiveram mais acesso à educação superior e especializações e temos mais profissionais preparados para posições estratégicas nas empresas. O melhor preparo tirou das empresas o protagonismo no desenvolvimento de seus talentos. Hoje muitos dos profissionais mais bem preparados possuem um amplo leque de possibilidades nos mercados nacional e internacional, já que temos um déficit de força de trabalho qualificada mundialmente. Novos vistos e flexibilidades imigratórias para determinados profissionais criados nos últimos anos por diversos países comprovam isso.
Somado a essa realidade, as pesquisas de diferentes empresas e institutos têm falado sobre o volume de trabalho que poderia ser feito remoto (IDC fala em 40% da força de trabalho mundial) e que cresce a quantidade de profissionais que prioriza as vagas remotas e flexíveis mesmo que os salários sejam mais baixos. Nesta nova configuração, os melhores talentos balizam as regras das contratações com mais poder de negociação.
Tudo indica que o nomadismo digital se fortalecerá nos próximos anos conforme governos, empresas e os próprios nômades se adaptarem simultaneamente. Apesar de ser um movimento benéfico para as economias e para as qualidades de vida individuais, o avanço desse movimento requer alguns ajustes prioritários, como mitigar os impactos no meio ambiente e na transformação de áreas urbanas, como o aumento do custo de vida.
Impacto para cidades e países
A regulamentação dos nômades digitais tem um aspecto comum que é a proteção das economias locais. Um dos objetivos dos países que recebem esses trabalhadores é incrementar o comércio e os serviços locais trazendo novos consumidores, com poder de compra elevado. Diferente de um turista tradicional, os nômades digitais impactam a economia nos médio e longo prazos, utilizando serviços que somente alguém de longa estada necessita. Algumas regiões têm se adaptado e se beneficiado com essa nova realidade.
A América Latina foi uma das regiões que mais rapidamente se engajou em atrair nômades para reparar as lacunas que a interrupção do turismo pela pandemia causou. Apesar disso, cidades como Tulum, no México, sentiram a pressão do rápido crescimento populacional sobre a precária infraestrutura da cidade que levou, inclusive, ao aumento do desmatamento na região. A América Latina e a Ásia têm várias cidades nas listas de melhores para ser nômade digital, sobretudo pelos atrativos naturais, relativa infraestrutura e bom custo-benefício, principalmente para norte-americanos e europeus. Com o aumento da presença desses estrangeiros, os aluguéis tendem a subir.
Enfrentados os desafios que as mudanças trazem, o nomadismo digital tem se mostrado benéfico para trazer também estabilidade econômica a destinos que sofriam com as baixas temporadas.
No Brasil, o Rio de Janeiro tem estimulado a chegada de nômades digitais institucionalmente por meio da Secretaria de Turismo da cidade e aparece nas listas de melhores lugares para viver. No Rio Grande do Norte, Pipa anunciou a criação de uma vila para nômades digitais. E a Paraíba foi pioneira no tema tendo sua capital, João Pessoa, como destino mais bem preparado do país para receber esse tipo de viajante.
O nomadismo digital é uma tendência que enxergamos com entusiasmo e passa por adaptações que são necessárias. As adversidades surgem na medida em que o movimento se estabelece e é natural que todos se ajustem. No Brasil, o visto foi oficializado em 22 de janeiro de 2022 e logo se mostrou como uma forma eficaz de atrair estrangeiros. No primeiro ano, o país emitiu, em média, um visto por dia para nômades digitais. Para o Brasil, atrair estrangeiros é uma vantagem, já que vivemos há anos um déficit imigratório com a estimativa de 4,5 milhões de brasileiros vivendo fora para apenas 1 milhão de estrangeiros morando aqui.
Sobre a autora
Diana Quintas é sócia no Brasil da Fragomen (maior e mais antiga empresa de migração do mundo) e vice-presidente da Abemmi (Associação Brasileira dos Especialistas em Migração e Mobilidade Internacional)