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terça-feira, dezembro 24, 2024

O esporte olímpico é migrante, mas será que vocês estão preparados para ter essa conversa?

A globalização do esporte cria oportunidades de inclusão para pessoas migrantes, mas também levanta questões sobre nacionalidade e pertencimento

Por Bianca Medeiros

O esporte olímpico é frequentemente visto como um espaço de inclusão e diversidade, a despeito dos preconceitos que permeiam a sociedade contemporânea. No auge dos Jogos Olímpicos e Paralímpicos de Paris em que temos inúmeros atletas de diversas nacionalidades competindo sob bandeiras que não são de seus países de origem, torna-se evidente o impacto do movimento migratório sobremaneira na organização social, política e económica do mundo, tendo resultados reais nesse espaço de luta simbólica e de capital cultural que é o esporte. (BOURDIEU, 1993)

Em contexto de Jogos Olímpicos e Paralímpicos essa realidade é ainda mais evidente porque o próprio evento opera com distintos enfoques identitários. Em certas circunstâncias, como durante a competição propriamente dita, o foco principal recai sobre a identidade individual do atleta. Em contrapartida, em momentos específicos como cerimônias, o hasteamento de bandeiras e celebrações de pódios, a ênfase se desloca para a identidade nacional, permeada por símbolos pátrios que se traduzem as vezes em momentos de união global e as vezes de competição e conflitos. (MACALOON, 2008).

Houlihan (2010) sublinha que o Estado-Nação é a principal referência para o esporte internacional e observa que, apesar de a linguagem esportiva conter elementos universalistas, sua interpretação varia significativamente entre diferentes sociedades. Isso explica por que alguns países demonstram pouca preocupação com as origens dos atletas, contratando-os para participar de grandes eventos, enquanto em outros países a naturalização de atletas estrangeiros é ainda um grande tabu.

Tanto é verdade, que a criação da Equipe Olímpica de Atletas Refugiados pelo Comitê Olímpico Internacional (COI) em 2016 trouxe à tona a realidade de milhões de deslocados ao redor do mundo. Esta iniciativa não só deu visibilidade à questão migratória global, mas também sublinhou o papel do esporte como ferramenta de inclusão e empoderamento.

Segundo o antropólogo Arjun Appadurai (1996), em seu conceito de “etnoscapes“, o movimento de pessoas, incluindo atletas, reflete a globalização e suas consequências culturais e sociais. A presença desses atletas nas Olimpíadas não apenas desafia as narrativas xenófobas, mas também celebra a diversidade humana em sua forma mais pura, o que também dá abertura para muitos desafios e contradições.

A discriminação racial e as políticas de imigração restritivas afetam diretamente os atletas. Estudos de Eric Dunning e Norbert Elias (1986) sobre a civilização do esporte mostram como as tensões sociais são refletidas e, por vezes, exacerbadas no campo esportivo. A experiência dos atletas imigrantes muitas vezes é marcada por adversidades que vão além das competições.

Prova disso, é que migrantes muitas vezes desempenham papéis cruciais em competições internacionais, como as Olimpíadas, onde suas habilidades atléticas são celebradas e aproveitadas para conquistar vitórias e prestígio para suas nações adotivas. No entanto, essa valorização momentânea no campo esportivo contrasta fortemente com a realidade cotidiana que muitos migrantes enfrentam, marcada por preconceito, discriminação e exclusão social.

Durante eventos esportivos de grande escala os atletas migrantes são frequentemente vistos como heróis nacionais que carregam a bandeira de seus países adotivos, recebem aplausos e são celebrados nos pódios. Suas vitórias são usadas para promover uma imagem de inclusão e diversidade, mostrando ao mundo um lado acolhedor e aberto da sociedade que representam. No entanto, essa aceitação é muitas vezes superficial e temporária.

Fora dos holofotes das competições, muitos desses atletas migrantes enfrentam desafios significativos. O preconceito racial e étnico é uma realidade constante para muitos migrantes, independentemente de suas conquistas esportivas. Eles podem ser celebrados em um momento por suas medalhas e, em outro, serem vítimas de discriminação no mercado de trabalho, em instituições educacionais e em interações sociais diárias. A aceitação que experimentam durante os eventos esportivos frequentemente não se traduz em uma inclusão genuína na sociedade.

A xenofobia e a discriminação institucional são barreiras adicionais que limitam as oportunidades para muitos migrantes. Em alguns casos, mesmo após representar e conquistar vitórias para seus países adotivos, esses atletas enfrentam dificuldades para obter cidadania plena, direitos básicos e acesso a serviços públicos. Esse paradoxo destaca uma desconexão profunda: os migrantes são valiosos quando suas habilidades podem ser utilizadas para ganhar prestígio e reconhecimento internacional, mas são frequentemente marginalizados quando buscam integrar-se plenamente à sociedade.

Esse fenômeno também revela um aspecto mais amplo das políticas de migração e naturalização esportiva. Muitos países investem em atletas migrantes com a intenção explícita de melhorar suas performances em competições internacionais. No entanto, essa relação utilitária muitas vezes não aborda as necessidades e os direitos desses indivíduos dentro e fora do contexto esportivo.

Portanto, enquanto os atletas migrantes podem brilhar temporariamente nas arenas esportivas, a luta contra o preconceito e pela verdadeira inclusão continua a ser um desafio significativo.

Além disso, a representação midiática desses atletas muitas vezes perpetua estereótipos raciais e culturais. A glorificação de atletas imigrantes durante os Jogos Olímpicos contrasta com a marginalização que muitos enfrentam em suas vidas cotidianas. Os estereótipos de atletas como naturalmente talentosos, mas menos esforçados ou intelectualmente inferiores, ainda são prevalentes.

Refugiados nos Jogos Olímpicos

Atletas que migram para competir por outros países muitas vezes enfrentam críticas e questionamentos sobre sua lealdade e identidade. A globalização do esporte, enquanto cria oportunidades para muitos, também levanta questões sobre nacionalidade e pertencimento. A dupla cidadania de atletas como Mo Farah, nascido na Somália e competindo pela Grã-Bretanha, ou o caso de atletas africanos que competem por países europeus, ilustra as complexidades dessas identidades híbridas traduzidos em preconceitos e falta de investimentos reais na profissionalização desses atletas ao mesmo que se espera alto rendimento e boas colocações nas competições.

A integração de atletas refugiados nas Olimpíadas também trouxe uma nova dimensão ao movimento olímpico. A Equipe Olímpica de Atletas Refugiados promove uma mensagem de esperança e resiliência. Esses atletas, que muitas vezes enfrentaram circunstâncias inimagináveis, encontram no esporte uma forma de reconstruir suas vidas e inspirar outros. A visibilidade desses atletas nas Olimpíadas desafia as narrativas de marginalização e exclusão, promovendo uma visão mais inclusiva e humanitária do esporte.

Um outro bom exemplo pode ser verificado quanto à pugilista Cindy Ngamba, que se tornou a primeira atleta a conquistar uma medalha olímpica pela equipe de refugiados. Embore treine com a equipe britânica de boxe, ela ainda não possui a cidadania do país de acolhida. Pelo contrário, antes de obter a medalha de Bronze em Paris, Cindy já esteve a ponto de ser deportada de volta para Camarões por questões documentais.

Neste sentido, embora o esporte olímpico represente um microcosmo em um recorte temporal delimitado e previsível de ações de inclusão e discursos de acolhimento, reflete também as realidades de exclusão. Mais que isso, embora o esporte tenha o poder de transcender fronteiras e unir pessoas de diferentes origens, também reflete e amplifica as desigualdades existentes na medida de que a aceitação só acontece se a medalha existir, caso contrário “voltem pra sua terra”.

Sobre a autora

Bianca da Silva Medeiros é Doutoranda em Direito na Universidade Nova de Lisboa – UNL, mestre em Ciências da Sociedade com ênfase em direitos humanos, sociedade e cidadania ambiental pela Universidade Federal do Oeste do Pará – UFOPA. Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Oeste do Pará – Ufopa. Especialista em Direito Constitucional Aplicado e Relações Internacionais com ênfase em Direito Internacional Público. Pesquisadora, Consultora Jurídica e Gestora de Projetos no Terceiro Setor. Amazônida, latina, filha da educação pública e defensora dos direitos humanos. 

Referências

  • BOURDIEU, Pierre. “Sociology in Question.” Sage, 1993.
  • APPADURAI, Arjun. “Modernity at Large: Cultural Dimensions of Globalization.” University of Minnesota Press, 1996.
  • DUNNING, Eric, and Norbert Elias. “Quest for Excitement: Sport and Leisure in the Civilizing Process.” Blackwell, 1986.
  • MACALOON, John J. This great symbol: Pierre de Coubertin and the origins of the modern Olympic Games. London: Routledge, 2008.

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