Por João Chaves
A publicação do Decreto nº 12.657 em outubro de 2025, instituindo a Política Nacional de Migrações, Refúgio e Apatridia (PNMRA), foi celebrada por organizações internacionais, sociedade civil e entidades da área como marco necessário para o tratamento da mobilidade humana no Brasil. O texto consagra princípios inclusivos e de afirmação de direitos humanos, reconhecendo migrantes como propulsores do desenvolvimento nacional.
Passada a repercussão inicial, cabe reconhecer o esforço do Poder Executivo em fazer aprovar a PNMRA e consolidá-la. Por outro lado, podemos desde já pensar em aspectos que podem gerar impactos futuros, tanto positivos quanto problemáticos.
A ausência de participação da sociedade no processo de construção
Desde 2017, a regulamentação do art. 120 da Lei de Migração que prevê justamente o desenvolvimento da PNMRA, aguardava concretização. Entre 2018 e 2019, projetos e iniciativas mapearam demandas para consolidação da Lei. O governo Bolsonaro e a pandemia representaram hiato significativo, em que a sociedade civil e a comunidade voltaram-se a uma pauta reativa de manutenção de direitos ante retrocessos e litígios sobre deportações sumárias e fechamento de fronteiras.
Em 2023, com o terceiro governo Lula, inicia-se o processo de construção da política com a formação de grupos de trabalho pelo Ministério da Justiça e coleta de subsídios. Esse processo prossegue em 2024 com a II Comigrar, onde sessenta propostas foram priorizadas com ampla participação das comunidades migrantes.
No entanto, entre as consultas de 2023 e a publicação da PNMRA transcorreram dois anos e meio. Ao que se sabe, o texto circulou dentro da burocracia interna do Poder Executivo em diversas versões desde meados de 2023, mas sem publicização. Diferente do Decreto nº 9.199/2017 que regulamentou a Lei de Migração, não houve discussão aberta da minuta, por consulta na plataforma Participa+Brasil ou em audiência pública, para avaliar em que medida o conteúdo elaborado poderia contribuir para os desafios do cenário migratório atual. A participação social, ao fim e ao cabo, foi unilateral e restrita, sem diálogo sobre o texto final.
O conceito problemático de “enraizamento comunitário”
Além do reconhecimento de migrantes como agentes de desenvolvimento, a PNMRA introduz o conceito novo de “valorização do enraizamento comunitário na implementação de mecanismos de promoção da migração regular” (art. 3º, IV).
Tecnicamente, o termo pode corresponder ao que outros países chamam de arraigo ou arraigamento: reconhecimento de redes de grupos de nacionais com permanência construída ao longo dos anos, servindo para análise individual de autorizações de residência em casos não previstos na legislação. Nessa leitura, seria um conceito progressista e relevante, para legitimar direitos migratórios individuais.
Contudo, uma interpretação alternativa é preocupante: tomar o enraizamento comunitário como indicador para promoção da migração regular pode beneficiar comunidades com proximidade cultural ao Brasil ou diásporas já consolidadas, excluindo as demais. Além disso, a memória das políticas migratórias brasileiras é forte: teorias do assimilacionismo, o conhecido temor dos “quistos étnicos” no Estado Novo, os debates na Constituinte de 1945 sobre proibição de entrada de japoneses, ou as políticas seletivas de refugiados antes e durante a Segunda Guerra, marcada por exames de graus de adaptação de grupos específicos.
Se prevalecer a visão de que o grau de enraizamento coletivo determina maior ou menor promoção da migração regular — incluindo concessão de autorizações, política de vistos e controle de fronteiras —, há risco de práticas restritivas a grupos menos visíveis ou “adaptáveis”. Retomar-se-ia, por via indesejada, o mito do bom migrante ao plano governamental.
Assim, questões ficam sem resposta: afegãos desde 2021 estão enraizados se há discussões sobre uso do Brasil como país de trânsito? Por que não se reconheceu explicitamente a dívida histórica com a África, cujo enraizamento comunitário é indiscutível? O conceito trata de patrocínio comunitário para seleção de grupos ou de critério jurídico para casos individuais?
Governança: avanços e ambiguidades
O Decreto que instituiu a PNMRA criou o Comitê Executivo Federal para coordenação intragovernamental e o novo Conselho Nacional de Migração (CNM) para controle social, articulação interfederativa e monitoramento. Porém, não esclarece se o CNM substituirá o CNIg (Conselho Nacional de Imigração) ou se será instância paralela. O CNIg, que já tinha problemas de identidade ao ser restrito após 2017 à migração laboral, tem dimensão de decisão de casos individuais não prevista para o novo CNM. Não há, ainda, definição sobre composição: ela repetirá os erros do CNIg, sem representação da sociedade civil e comunidades migrantes, ou avançará para um modelo mais amplo?
Outra ambiguidade notável envolve a Operação Acolhida, em curso desde 2018 e articulada no âmbito da Lei nº 13.684, voltada para a recepção e políticas de acolhimento à migração venezuelana. A PNMRA pretende regulamentar acolhida em fluxos provocados por crises humanitárias mencionadas naquela Lei, mas mantém em paralelo o CFAE – Comitê Federal de Assistência Emergencial, que em sete anos não proporcionou participação social. Perde-se oportunidade de normalizar o tratamento à migração venezuelana dentro da nova política, e incluir a Operação Acolhida dentro do debate da política migratória nacional em suas novas instâncias, algo mais que necessário para fugir da lógica humanitária e da emergência permanente.
Temas postergados e omissões significativas
A PNMRA deixa margens excessivas para regulamentação ministerial futura, repetindo tendência do Decreto nº 9.199/2017 que regulamentou a Lei de Migração. Alguns exemplos: o Ministério do Desenvolvimento Social deve “disponibilizar serviços de acolhimento especializado”, mas não define como – note-se que até hoje equipamentos da Operação Acolhida não estão tipificados no SUAS. Não se avançou sobre o conceito de mediadores culturais, reivindicação presente em várias propostas da II Comigrar, de diferentes eixos. Ao mencionar fronteiras, enfatizam-se segurança e soberania nacional, resquícios do regime ditatorial, sem garantias de atendimento humanizado a solicitantes de refúgio ou, o que seria mais urgente, meios de aplicação do princípio do non refoulement ou da proibição do rechaço.
Sobre regularização documental, fala-se em “aprimoramento contínuo” e “celeridade”, sem reconhecer necessidade de marco operacional mais sólido para superar óbices como exigências excessivas e falta de transparência na Polícia Federal.
Outras omissões importantes incluem:
- migrantes indígenas são mencionados apenas em dois incisos sobre educação, mas não se avança em nada quanto à inclusão do tema na agenda pública para políticas de proteção a povos indígenas, mesmo que se saiba de todas as dificuldades vividas pelo povo warao proveniente da Venezuela desde 2016, e outras questões de migrantes indígenas em contextos urbanos;
- crianças e adolescentes não são objeto de atenção no texto, especialmente quanto à proteção sociojurídica devida às desacompanhadas;
- não houve qualquer menção acerca da mobilidade por mudanças climáticas, em especial no ano em que o Brasil sedia a COP30 e é publicada a Opinião Consultiva nº 32 da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre emergência climática;
- ausência de qualquer menção a inclusão de pessoas migrantes em programas habitacionais;
- nenhuma referência sobre o sistema de refúgio brasileiro, sua governança, aplicação do Plano de Ação do Chile 2024-2034, ou as graves questões estruturais de elegibilidade do CONARE – Comitê Nacional para os Refugiados;
- não há reconhecimento do princípio de non refoulement ou compromissos contra devolução indevida e deportações coletivas;
- há menção acerca da fiscalização policial em fronteiras, mas sem referenciar a proteção de direitos humanos em zonas restritas ou de controle migratório— especialmente no contexto atual quando há suspensão do direito de solicitar refúgio em aeroportos há mais de um ano, fato amplamente conhecido e noticiado.
Por fim, destaca-se o fato de que a Lei de Migração tratou de políticas para emigrantes em seus artigos 77 a 80; no entanto, a PNMRA não se ocupou de tratar dos brasileiros emigrados ou retornados. Esse ponto toma maior relevância em função da diáspora de 4,5 milhões de nacionais brasileiros no exterior, e do momento atual de intensificação dos retornos por deportações. A não ser que haja uma política nacional própria para deportados, para além do Programa Aqui é Brasil, essa será uma omissão gritante.
Conclusão: construir a partir do que temos
A crítica ao texto do Decreto nº 12.657 é ato de reconhecimento do trabalho que resultou no Decreto regulamentador da Lei de Migração, na II Comigrar e nas suas etapas preparatórias que se ocuparam de forma intensa das omissões apontadas. Ressalta-se que a falta de discussão ampla sobre o texto implicou em prejuízos importantes à garantia de direitos, mas não se nega sua necessidade.
Agora, com a Política Nacional em vigor, mesmo com lacunas e impasses, pessoas migrantes e sociedade civil têm mais condições legais de exigir direitos e reivindicar espaço. É fundamental agora o engajamento amplo para construção de Plano Nacional quadrienal que avance em mais garantias e consolide uma visão menos securitária, menos centrada na perspectiva governamental e mais próxima das demandas contemporâneas. Assim como ocorreu com a Lei de Migração, a Política Nacional será o que se fizer dela daqui por diante.
Este texto de intervenção é um resumo do artigo “Notas iniciais sobre a Política Nacional de Migrações, Refúgio e Apatridia: o que pensar e o que fazer”, de minha autoria, em fase de submissão e publicação como preprint. O resumo contou com a revisão da advogada Elissa Fortunato e uso de mecanismos de inteligência artificial. As opiniões nele contidas têm caráter individual, não representando posição institucional da Defensoria Pública da União.
Sobre o autor
João Chaves é defensor público federal e doutorando em Ciências Humanas e Sociais pela UFABC. E-mail: joao@joaochaves.com
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