Uma mulher em crise, um guarda, uma oficial do governo e um afegão solicitante de refúgio: é por meio desses personagem que a série Estado Zero, da Netflix, aborda o tratamento recebido por imigrantes que solicitam refúgio na 13ª maior economia do mundo: a Austrália.
Recomendada pelo ACNUR, a Agência da ONU para Refugiados, a série é inspirada em fatos reais e retrata o aprisionamento de migrantes em ilhas da Oceania por parte do governo australiano.
Vale lembrar que a Austrália é um dos países que não aderiram ao Pacto Global da ONU para Migração, firmado em dezembro de 2018. O Brasil chegou a aderir ao acordo, mas se retirou logo no começo de 2019, em uma das primeiras medidas do governo de Jair Bolsonaro.
Kate Blanchett, atriz e Embaixadora da Boa Vontade do ACNUR, acredita que a série permitirá a aproximação do público ao tema do deslocamento forçado e seus impactos na vida das pessoas.
A série e a realidade
A produção, originalmente intitulada Stateless – apátrida em tradução livre – retrata a política migratória australiana aplicada desde 2013. Com a eleição presidencial de Tony Abbott, político de extrema-direita, aqueles que chegassem de barco no país passaram a ser vistos como violadores de uma fila composta por pessoas em campos de refugiados em outros países.
Nesses sete anos, mais de 3.000 requerentes de refúgio que chegaram até a Austrália de barco foram transferidos a força para centros na Papua Nova Guiné e em Nauru, pois estariam “furando esta fila”.
Ao chagar de barco na costa australiana, estas pessoas são automaticamente realocadas para prisões mantidas em ilhas da Oceania, de onde aguardarão o julgamento de seus casos. Na série, é isso que acontece com Ammer, interpretado por Fayssal Bazz que busca uma nova oportunidade para sua família.
Logo ao chegar na praia australiana, o professor afegão é levado para um campo, onde deve ficar até que seu processo seja analisado. Lá estão migrantes de diversas partes do mundo, os quais foram esquecidos em seus quartos em meio a maus-tratos, negligência e abusos.
Um dos personagens encontrados por Ammer é um senhor que aguarda há anos para a conclusão de seu caso. Os dados do governo australiano apontam que a média de tempo de espera dentro desses locais é de 545 dias, mas que 324 pessoas aguardam atualmente há mais de 730 dias. Além disso, segundo comissão montada pela ONU, em 2017, um afegão esperava uma resposta ao seu processo desde 2009.
Assim como mostrado na série, não há uma atualização do andamento da solicitação aos migrantes e muito menos uma previsão de quando o processo estará encerrado. Enquanto isso, as pilhas de relatórios em análise crescem conforme responsáveis pela análise não ficam por muito tempo em seus cargos.
Em 2017, o aprisionamento de migrantes por parte do governos australiano tornou-se um escândalo internacional. Em acordo fechado com os governos das ilhas próximas, o governo de Abbott arcava com os custos de deter mais de 2.500 pessoas em centros de detenção temporária, inclusive crianças.
De acordo com relatório da ONU, 88% dos aprisionados em um desses locais, a ilha de Manus, sofriam de transtornos depressivos, incluindo a psicose. Além disso, entre as causas das mortes estão “autoimolação, overdoses, septicemia – resultado de negligência médica — abuso sexual e desespero crescente”, escreveu Roger Cohen, jornalista do The New York Times que esteve na ilha em 2016.
Em Estado Zero, através da narrativa das quatros histórias principais, violências físicas e psicológicas são retratadas dentro dos do complexo prisional. Espancamento, punições, abuso de tranquilizantes, tentativa de suicídio, solitárias e restrição de visitas são algumas das violências mostradas na série.
Em 2018, as Nações Unidas pediram à Austrália que evacuasse imediatamente seus centros de detenção para evitar uma crise de saúde em desenvolvimento. A ONG Médicos Sem Fronteiras (MSF) pediu uma evacuação humanitária imediata dos detidos no exterior. Segundo a organização, houve 78 casos de tentativa de suicídio e automutilação só em Nauru em 2017.
Assim como muitos países ao redor do mundo, a Austrália tem privatizado seus centros de detenção de migrantes. Na produção, Claire, interpretada por Asher Keddie, é chamada ao centro para ser a responsável pelo local. Com o passar do tempo, sua personagem entra em conflito com o chefe da empresa responsável pela a administração da prisão, que afirma estar fazendo o melhor possível para controlar os solicitantes com a quantidade de guardas e seu orçamento limitado.
O corpo médico é retratado pela produção poucas vezes, mas sempre como negligente e o qual faz alto uso de medicamentos calmantes para contornar as situações.
O ACNUR alertou sobre o fato de muitos requerentes de asilo com problemas críticos de saúde não tinham acesso a cuidados médicos. Catherine Stubberfield, porta-voz do ACNUR em Canberra, disse ao The New York Times em 2018 que a assistência médica estava “desmoronando” nos centros.
Os números da migração
De acordo com os dados do Departamento de Assuntos Internos, 37.007 pessoas entraram irregularmente pela costa da Austrália desde novembro de 2011 até março de 2020. Destes, 24.265 tiveram um visto concedido, foram deportados, enviados de volta aos centros de detenção ou morreram, os demais ainda aguardam uma decisão definitiva.
Durante o último mês de junho, 1.802 status de refúgio foram determinados, e apenas a 162 pessoas foi concedido o Visto de Proteção Final.
Quanto aos centros, segundo o último relatório do governo australiano divulgado em março deste ano, eles abrigam 1.373 imigrantes, dos quais 284 são crianças.
Ex-detido escreveu livro
Um dos solicitantes de refúgio que conheceram a realidade desses centros de detenção australianos foi o jornalista curdo iraniano Behrouz Boochani, que passou seis anos na ilha de Manus. Seu caso, no entanto, teve um final que pode ser considerado feliz.
Ainda preso, Boochani ganhou notoriedade internacional após escrever, pelo WhatsApp, o livro “No Friend But the Mountains: Writing from Manus Prison” (Nenhum Amigo Além Das Montanhas: Escrevendo a partir da prisão de Manus).
A obra rendeu ao jornalista, em 2019, o maior prêmio literário da Austrália, o Victorian Prize for Literature. Ele também ganhou na categoria de não-ficção do mesmo evento. Mas, não conseguiu comparecer a cerimônia de premiação por não ser liberado.
No entanto, ele conseguiu liberação meses mais tarde para participar de um festival literário em Christchurch, na Nova Zelândia. A ideia, após o evento, é obter em um outro país o asilo político que foi negado até então pela Austrália.
*Venha ser parte do esforço para manter o trabalho do MigraMundo! Veja nossa campanha de financiamento recorrente e junte-se a nós: https://bit.ly/2MoZrhB
*Gostaria de receber notícias do MigraMundo diretamente em seu WhatsApp? Basta acessar este link e entrar em nosso grupo de distribuição de conteúdo