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sábado, dezembro 21, 2024

A situação dos imigrantes na Itália como sinal de declínio de uma sociedade (parte 1)

Pandemia agravou a situação dos imigrantes na Itália, além de evidenciar problemas e contradições da própria sociedade italiana

Por Arnaldo Cardoso

“Não vendo mais flores, tenho medo”. Foi assim que Sahabuddin Chokdarele, 55 anos, natural de Bangladesh, que sobrevivia vendendo flores para os frequentadores dos bares e restaurantes do bairro de Navigli, em Milão, expressou como se sente depois de ter sido empurrado por dois jovens em um canal na noite do último dia 11 de julho.

Há dois anos Sahabuddin vive em Milão com um visto de residência por razões humanitárias que precisa ser renovado periodicamente. Como contou ao jornal La Repubblica, ele saiu de sua vila natal há oito anos onde trabalhava nos campos colhendo tomate e cebola sem que lhe rendesse recursos suficientes para a sua sobrevivência e de sua família. O primeiro destino foi a Turquia, depois seguiu para a Líbia onde trabalhou como pedreiro e carregador em armazéns, sofreu violências, prisão e seguiu para a Itália, sendo a Sicília sua porta de entrada no país da bota.

A história de Sahabuddin é só mais uma entre tantas outras de migrantes que depois de sobreviverem a inúmeras situações de abusos e violências em seus países de origem e no percurso da viagem, se veem novamente submetidos a relações sócio-políticas que reproduzem as mesmas e/ou outras formas de violência e exploração, além de passarem a ser usados como bode expiatório.

Na literatura sobre migrações internacionais a figura do estrangeiro é objeto de diferentes abordagens que refletem sobre as relações entre os de dentro e os de fora, o eu e o outro, o familiar e o estranho. Em passagem do livro O estrangeiro, de Caterina Koltai, a autora lembra que “o termo estrangeiro deriva do latim extraneous que enquanto adjetivo, queria dizer ‘vindo de fora’. Como substantivo, só passará a existir a partir do Império Romano, quando passou a representar uma categoria política. […] A categoria sócio-política que o estrangeiro ocupa, o fixa numa alteridade que frequentemente implica numa exclusão.” (KOLTAI, 1998, 105).

No contexto da atual pandemia viu-se na Itália o agravamento da situação dos imigrantes ao mesmo tempo em que se tornaram mais evidentes problemas e contradições da própria sociedade italiana.

Ao longo desse artigo e de outros três que o seguirão, buscou-se reunir a título de demonstração, situações correntes na Itália relacionadas a imigrantes e política de imigração, bem como informações demográficas, econômicas e políticas pertinentes ao tema. Esse exercício foi motivado pela convicção da importância das várias frentes de ação em defesa permanente dos Direitos Humanos e, em particular, dos Direitos Humanos dos imigrantes, por se tratar de população sujeita a violências e exploração em função de sua extrema vulnerabilidade.

A ideia-força que serviu de eixo aglutinador para a presente pesquisa foi a de que a investigação da situação dos imigrantes nas sociedades contemporâneas – no caso em tela, a italiana – tem o poder de revelar não só as violências a que os imigrantes estão submetidos, mas sobretudo as estruturas políticas e sociais que engendram essas violências e que, ao se  reproduzirem ao longo do tempo reificam o pior das sociedades, como o racismo, a xenofobia e diferentes formas de violência e subjugação, corroendo instituições sociais e políticas e pondo a nu seu próprio estado de declínio.

Na trilha da pesquisa resgatamos para uma contextualização alguns aspectos da crise migratória de 2011 para depois apresentar  informações demográficas da Itália, percepções sobre a imigração e a tática do bode expiatório explorada pela extrema direita italiana, a exploração da mão-de-obra do imigrante na agricultura, imigrantes explorados por redes de prostituição, a violência sexual nas rotas de migração, a situação dos imigrantes na Itália na pandemia de coronavírus, a “economia não observada” na Itália e implicações de disposições legais sobre imigração.

A questão migratória e o recrudescimento da xenofobia

Desde a questão migratória iniciada em 2011 decorrente em parte da crise econômica global de 2008-9 e impulsionada pela onda de manifestações populares e conflitos no norte da África e Oriente Médio, a radicalização política na Europa dirigiu seu foco para os migrantes e refugiados tornando ainda mais crítica a vida dessas pessoas deslocadas de seus países de origem, pondo também em xeque normas e convenções no âmbito do Direito Internacional dirigidas a proteção da pessoa com base nos Direitos Humanos.

Em 2014, um dos anos de pico da crise, o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) contabilizou 280 mil migrantes na Europa, sendo 170 mil na Itália, principal porta de entrada à Europa. A intensificação da guerra na Síria agravou ainda mais a crise humanitária decorrente dos deslocamentos forçados.

Diariamente, milhares de pessoas se arriscam no mar Mediterrâneo em busca de uma vida melhor na Europa. O que os espera do outro lado (quando chegam) é incerto. Crédito: Victória Brotto/MigraMundo

A Organização Internacional para as Migrações (OIM) em 2015 contou mais de 1 milhão de chegadas pelo mar à Europa, das quais 154 mil foram para a Itália. No mesmo ano o número de solicitações de refúgio na UE foi de 1,26 milhão. Também foram muitas as tragédias no Mediterrâneo; só em 2015 foram mais de 3,8 mil mortes por afogamento.

Em 2018, mesmo com a significativa redução (- 75%) dos fluxos migratórios, a chegada ao poder da Liga de Matteo Salvini – líder da extrema direita italiana – se deu através de campanha eleitoral calcada em discurso xenófobo e abusando de fake news associando migrantes a crimes e desemprego, estimulando o ódio e a intolerância no país, numa típica tática de produção de bode expiatório.

É verdade que a tática do bode expiatório não é nova, como bem apontou Zygmunt Bauman em seu “Estranhos à nossa porta” (Strangers  at Our Door) “Convocar a nação às armas contra um inimigo estabelecido (como propôs Karl Schmit em Political Theology) oferece uma vantagem adicional aos políticos na busca frenética de eleitores.” (2016, 37)

No período de pouco mais de um ano em que Salvini acumulou os cargos de Vice Primeiro Ministro e Ministro do Interior da Itália (2018-19), ele pôs em prática uma política de afronta à leis nacionais e convenções internacionais negando autorização para atracação de navios humanitários em portos italianos, pondo em risco a vida de centenas de pessoas resgatadas do mar. Essa política agravou um quadro jurídico e político que já vinha em curso no país, criminalizando a imigração e o imigrante.

O socorro em alto mar sob ataque

Os casos mais conhecidos e que resultaram em processos de investigação contra Salvini por “sequestro, prisão ilegal e abuso de cargo” foram os dos navios Ubaldo Diciotti com 190 migrantes, do Aquarius/Orine/Dattilo com 630 migrantes, do Sea Watch 3 com 40 migrantes e Gregoretti com 131 migrantes.

No caso do Sea Watch 3, a capitã Carola Rackete que depois de dias de espera por autorização desacatou a proibição e atracou em Lampedusa com os migrantes resgatados, foi detida e depois libertada por ordem de um magistrado de Agrigento.

A capitã alemã Carola Rackete, do navio Sea Watch 3, que bateu de frente com a política anti-imigração italiana. Crédito: Till Egen/Sea-Watch

Após declarações ofensivas de Salvini contra Carola Racjette ela ingressou com processo contra Salvini por difamação no Ministério Público de Roma, encaminhado depois para Milão. No processo os ataques de Salvini foram classificados como “uma pura ferramenta propagandística e instigatória de um ‘discurso de ódio’, que extrapola todas as referências à função institucional”.

O caso do navio Gregoretti segue seus trâmites testando o sistema Judiciário e o Parlamento italianos. Na última semana de julho de 2020 uma votação tumultuada no Parlamento aprovou a quebra da imunidade parlamentar de Salvini como senador para que seja julgado.

Segundo o artigo 605 do código penal italiano (parágrafos I, II, n. 2 e III) “a obrigação de salvar vidas no mar constitui um dever específico dos Estados e prevalece sobre todas as regras que visam contrastar a imigração irregular” e o artigo 5 da Convenção para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais reconhece a inviolabilidade do direito à liberdade pessoal.

A demografia e a questão populacional italiana

De acordo com as estatísticas produzidas pelo Istat (Instituto Nacional de Estatística) da Itália o ano de 2019 registrou a menor rotatividade natural dos últimos 102 anos, com apenas 435 mil nascimentos, 140 mil a menos em comparação com os nascimentos anuais de uma década atrás.

A série histórica mostra que de 2019 para 2018 a população italiana teve queda de 116 mil habitantes, de 2018 para 2017 queda de 90 mil, de 2017 para 2016 86 mil a menos, de 2016 para 2015 139 mil a menos, e o declínio também é observado nos anos anteriores.

Das estatísticas do ano de 2019 pode-se também destacar informações como as de que na Itália os habitantes de 0 à 39 anos correspondem a 39,41% da população, portanto, 60,59% tem idade a partir de 40 anos. A faixa mais expressiva é a de indivíduos com idade entre 45 e 54 anos, que correspondem a 16,11% da população. A faixa entre 25 e 34 anos corresponde a 10,8% da população.

Para efeito de comparação, nos Estados Unidos os habitantes com idade entre 0 e 39 anos correspondem a 52,21%, a faixa mais expressiva é a de indivíduos entre 25 e 34 anos (14,16%). Na China, os habitantes com idade entre 0 e 39 anos correspondem a 52,19%, a faixa mais expressiva é a de indivíduos entre 45 e 54 anos (16,91%).

Na Rússia os habitantes com idade entre 0 e 39 anos correspondem a 50,68%, e a faixa mais expressiva é a de indivíduos entre 30 e 39 anos com 16,77% da população. No Brasil os habitantes com idade entre 0 e 39 anos correspondem a 60,6% e a faixa mais expressiva é a de indivíduos entre 25 e 34 anos (16,05%).

Na Alemanha, os habitantes com idade entre 0 e 39 anos correspondem a 42,95% e a faixa mais expressiva é a de indivíduos entre 50 e 59 anos (16,25%).

Em termos demográficos gerais, os europeus estão mais velhos (com Itália, Alemanha e Portugal com as médias mais altas, 45 anos), o número de mortes supera a de nascimentos (5,3 milhões de mortes e 5,0 milhões de nascimentos), as taxas de fecundidade caem e a principal fonte de renovação da população deve-se a migração líquida, como informam os relatórios do Istat e da Eurostat.

Ainda sobre a Itália

A idade média das mães na Itália (32,1 anos) está entre as mais altas da UE, com taxas de fertilidade que “continuam a mostrar um declínio substancial na juventude (até cerca de 30 anos) e um aumento progressivo naquelas mais velhas (depois dos 30)”.

Mulheres com mais de 40 anos têm mais filhos do que jovens com menos de 20 anos. E a falta de filhos é parcialmente mitigada pela contribuição das mulheres imigrantes aos nascimentos. De fato, cerca de um quinto das crianças nascidas em 2019 têm uma mãe estrangeira. Ainda segundo dados do Istat “cerca de um quinto das crianças nascidas em 2019 têm uma mãe estrangeira.”

A expectativa de vida na Itália atingiu no ano passado 85,3 anos para as mulheres e 81 para os homens. Há também um aumento adicional na idade média, que é de 45,7 anos.

A emigração, sobretudo do Sul para o Norte, cresce continuamente em função das desigualdades sociais, causando inclusive o fenômeno de despovoamento de cidades.

Também cresce o número de italianos que deixam o país (em 2019 foram 120 mil). E ainda mais preocupante é que boa parte dos italianos que buscam outros países para viver são jovens e com alta escolaridade. Muitos deles saem para continuar estudos e decidem ficar nesses outros países. Por ocasião das tensões em torno do Brexit, pesquisas apontaram a existência de 450 mil jovens italianos no Reino Unido, sobretudo atraídos por oportunidades de trabalho em setores dinâmicos.

Sobre o autor

Arnaldo Cardoso é cientista político, pesquisador e professor universitário.


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