Atualizado às 12h23 de 18.ago.2020
A situação de limbo vivida por grupos de imigrantes que chegam ao Brasil a pé e sem documentos por meio da fronteira com o Peru, no Estado do Acre, levou a uma nova ação contra a deportação dessas pessoas no contexto da pandemia do novo coronavírus (Covid-19).
Desta vez, uma Ação Civil Pública (ACP) foi protocolada na última segunda-feira (17) e assinada em conjunto pela Defensoria Pública da União (DPU), Ministério Público Federal (MPF), Conectas Direitos Humanos e Caritas Arquidiocesana de São Paulo.
Os argumentos baseiam-se especialmente na Lei de Refúgio (Lei 9.474/1997) e na Lei de Migração (Lei 13.445.2017). Esses ordenamentos jurídicos, na visão das instituições, têm sido violados pelas 18 portarias emitidas desde março pelo governo federal para restringir a entrada de pessoas no país sob o contexto da Covid-19.
“Enquanto a portaria de fronteiras seguir descumprindo a Lei de Refúgio, mais e mais situações como essa se repetirão e foi isso que motivou a ação ontem impetrada. A atual portaria vence agora no final de agosto e uma renovação mantendo essas partes violadores de direitos será inadmissível”, ressalta Camila Asano, diretora de programas da Conectas.
A ação destaca ainda que a acolhida por razões humanitárias é um princípio essencial no ordenamento jurídico brasileiro e que “não há qualquer situação que justifique o impedimento de alegar a condição de refugiado/a e solicitar a consequente proteção física e jurídica dos indivíduos em tal situação”.
Situação kafkiana
“Essa nova ACP tenta dar solução coletiva a uma situação que não vai ter fim enquanto durarem as portarias”, resumiu ao MigraMundo o defensor público João Chaves, um dos autores da ação.
Ao cruzarem a fronteira, sem documentos, os imigrantes são detidos e deportados pela Polícia Federal para o Peru. No entanto, também são impedidos de ingressar no país vizinho, que também conta com seus acessos fechados.
Em razão disso, os imigrantes acabam restritos a uma ponte sobre o rio Acre que, marca a fronteira entre os dois países. Nesse confinamento a céu aberto, os imigrantes — incluindo crianças e adolescentes — dependem da ajuda enviada por entidades assistenciais enquanto aguardam uma solução para o caso.
‘Uma situação kafkiana e desesperadora de deslocalização, verdadeiro estado de exceção individual contra um grupo de pessoas extremamente vulneráveis a quem o Brasil nega tratamento digno e humanitário que assumiu quando da assinatura de tratados internacionais de direitos humanos e promulgação das Leis de Migração e Refúgio”, ressalta a ACP.
As instituições ponderam que o Brasil pode estabelecer critérios de admissão e inadmissão de indivíduos, de acordo com suas políticas internas e suas relações internacionais. Contudo, apontam que esse exercício encontra limites na lei e nos compromissos assumidos nos Tratados Internacionais. Condição essa que deve ser respeitada mesmo em contexto de emergência sanitária durante uma pandemia.
“A União, ao promover o rechaço sob a forma de repatriação ou “deportação” com fundamento numa norma temporária sem respaldo em lei, não apenas devolve os migrantes a um país que sequer era o de sua nacionalidade. Pelo contrário, sabe e está ciente que os migrantes, muitos dos quais crianças, adolescentes, pessoas com deficiência, idosos e mulheres, podem ser devolvidos a um não lugar, uma zona que está juridicamente sob responsabilidade do Estado brasileiro como parte de seu território mas para fora da qual não podem sair.”, detalha o texto da ACP.
Situação recorrente
No último dia 6 de agosto, a Justiça Federal do Acre já havia acolhido uma decisão liminar fruto de ação da DPU que suspendeu a deportação de 18 imigrantes que tentaram entrar no Brasil a pé, por meio da fronteira com o Peru.
Na decisão, o juiz Jair Araújo Facundes, da 3ª Vara Federal Cível e Criminal da Seção Judiciária do Acre afastou a aplicação da portaria interministerial que veda a entrada de estrangeiros por fronteiras terrestres durante a pandemia.
Segundo o magistrado, a aplicação da portaria sobre o grupo “resultaria em severo risco à vida, à saúde e à integridade de pessoas aparentemente refugiadas, sendo parte delas formada por crianças e adolescentes.”
Em maio passado, a DPU também atuou em favor de um grupo de 48 peruanos que saiu do estado de São Paulo e chegou ao Acre na primeira semana daquele mês.
Nesse caso, os defensores acionaram autoridades brasileiras e peruanas para apoio assistencial ao grupo e viabilizar o retorno dos imigrantes ao Peru. Após a realização de testes rápidos para Covid-19, o grupo teve o acesso ao Peru liberado, mediante respeito às regras de quarentena e isolamento social do país vizinho.
Ainda em março, nas primeiras semanas de pandemia, um total de 340 imigrantes chegou às cidades acreanas que ficam na região de fronteira com Peru e Bolívia. O grupo, que aos poucos conseguiu deixar a região, contou com apoio da sociedade civil local e da OIM (Organização Internacional para as Migrações).
Portarias discriminatórias
A situação vivida pelos imigrantes no Acre é um exemplo da principal crítica de entidades da sociedade civil sobre as portaria interministeriais que restringem a entrada de pessoas de outros países no Brasil.
Um de seus pontos polêmicos é o que estabelece que imigrantes que tenham entrado de forma indocumentada no país são impedidos de pedir refúgio.
As portarias fazem ainda ressalvas adicionais em relação a venezuelanos e não menciona situações de pessoas em situação de refúgio ou que caibam no chamado visto humanitário, previsto na Lei de Migração.
No entanto, a edição mais recente da portaria liberou o acesso de pessoas de outros países via aeroportos. O argumento citado pelo governo federal para essa exceção é o incentivo ao turismo.
Asano aponta que essa portaria atual contém em si uma contradição e um caráter discriminatório. “Por um lado, autoriza a entrada de turistas que tenham recursos para chegar de avião, mas impede que uma família que consiga fugir de um conflito e depois de uma dura travessia terrestre possa ser acolhida aqui e tenha seu pedido de refúgio analisado”.
Em junho, dez instituições da sociedade civil ligadas à temática migratória — incluindo a Conectas — enviaram uma carta ao governo na qual criticam as ressalvas dirigidas especialmente aos venezuelanos e a ausência de menção a situações de refúgio.
Procurado à época pelo MigraMundo, o Ministério da Justiça informou por meio de assessoria de imprensa que a então Portaria 340 mencionava as questões de ajuda humanitária (artigo 3º, VI-b; e artigo 4º, parágrafo único). No entanto, a pasta não se manifestou em relação às exceções a venezuelanos.
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