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sábado, novembro 23, 2024

Tráfico de bebês: nos anos 1980, milhares foram adotados ilegalmente fora do Brasil

Por Gabriel Toueg

A recente minicrise entre Israel e o Brasil, provocada por uma declaração do presidente Luiz Inácio Lula da Silva que comparou aos nazistas as ações do Exército israelense na Faixa de Gaza – em função dos números alarmantes de civis mortos – não foi o único incidente diplomático na história entre as duas nações. Aliás, a década de 1980 vivenciou um estremecimento que envolveu o tráfico de bebês brasileiros para a nação localizada no Oriente Médio.

Brasil e Israel tiveram laços bem atados, com acordos comerciais, troca de tecnologias e interesses mútuos. Não é incomum encontrar ruas israelenses com o nome de um notório brasileiro, Oswaldo Aranha, o embaixador que presidia a Assembleia da ONU, em 1947, quando ocorreu o voto que dividiria a Palestina, então sob domínio britânico, entre judeus e árabes.

Também nem é preciso dizer que, como em muitos outros países, em Israel o Brasil desperta paixões. Nossas telenovelas, nossa música, a capoeira, o açaí… diversos aspectos da cultura brasileira fazem parte do dia a dia dos israelenses. E é para a América do Sul que muitos deles viajam quando deixam o período militar obrigatório para rapazes e garotas.

Bruna, Caroline, Bruna

Há um episódio nessa amizade, porém, desconhecido de muita gente, embora muito repercutido à época. Em outubro de 1986, uma bebê de 4 meses de idade foi sequestrada de sua casa em um bairro periférico de Curitiba (PR). Seu nome era Bruna. Poucas semanas depois, ela passaria a se chamar Caroline, adotada por um casal israelense que vivia em Lod, cidade próxima a Tel Aviv.

A adoção – ilegal – de Bruna não foi um caso isolado, a não ser por um detalhe: das milhares de crianças que nasceram no Brasil nos anos 1980 e foram traficadas para adoção, Bruna foi a única que conseguiu, ainda bebê, voltar para casa. 

A história da menina não foi poupada de dores, batalhas judiciais, da atuação sensacionalista de alguns veículos de imprensa e de uma quase crise diplomática entre Brasil e Israel, depois justamente de falas inoportunas em meio ao longo e emocional julgamento do caso.

No fim de quase dois anos, o esforço conjunto de ministérios dos dois países e uma decisão da Suprema Corte israelense deram ao caso, como desfecho, o retorno da bebê à sua família biológica. Bruna voltava a se chamar Bruna.

Era 30 de junho de 1988 quando ela embarcou com os pais biológicos em Tel Aviv. No dia seguinte, o primeiro de julho, foi recebida em Curitiba com festa, populares nas ruas, carreata e num ato em que o então governador do Paraná, Álvaro Dias, entregou à mãe da menina um cheque de Cz$ 82 mil, equivalente a R$ 5 mil atuais – o valor tinha sido angariado com doações. 

Histórias roubadas

Mas Israel não foi o único “importador” de bebês brasileiros nos anos 1980. Naquela época, o Brasil tinha de sobra o que faltava aos países do que se chamava “Primeiro Mundo”: crianças. A demanda de casais estrangeiros, resultado do que eles consideravam adoções demoradas ou burocratizadas em seus países, foi combinada à oferta brasileira por quadrilhas que perceberam o tamanho daquele mercado: bebês eram vendidos por até 50 mil dólares para as famílias fora do país, com o pretexto de estarem arcando com os custos da burocracia.

Material para consulta: Guia de orientação sobre identificação e atendimento a crianças e adolescentes vítimas de tráfico de pessoas (Organização Internacional para as Migrações)

Famílias nos EUA e em países europeus – principalmente Alemanha, Itália, França, Suécia, Países Baixos e Reino Unido – adotaram crianças brasileiras naquele período. Embora nem todos tenham sido traficados – o dispositivo da adoção internacional existe legalmente –, estima-se que a quadrilha de Arlete Hilu, uma mulher de cerca de 40 anos à época e que se apresentava ora como advogada, ora como assistente social, tenha movimentado ilegalmente até 12 mil crianças nos anos 1980.

Bruna foi uma delas, tirada de casa por uma falsa babá da quadrilha, Marisa Vieira, levada por ela a um integrante da gangue, Rodolfo Garcia, entregue por ele à “sócia” de Hilu no Paraguai, Maribel da Rosa Pereira, e de lá transportada para Israel. Marisa seria presa dias depois. De Bruna, por dois meses, nada se saberia. 

Hilu também seria presa, no aeroporto de Tel Aviv, ao tentar entrar no país com um passaporte falso. Embora fosse procurada em “pilhas de processos”, como certa vez disse à imprensa, em Israel ela foi tratada como heroína: para famílias impossibilitadas de gerar filhos, o negócio de Hilu, que eles demorariam para entender como ilegal, era uma salvação. Em dezembro daquele ano, ela seria presa novamente. Teve, ao que se sabe (os processos correm em segredo de justiça até hoje), duas condenações.

A lista dos países e a origem das crianças – principalmente cidades na região Sul do Brasil – estavam bem associadas: quem adotava buscava crianças com traços europeus, e os estados sulistas têm colônias numerosas de alemães e italianos, principalmente. Em sua última aparição pública, numa entrevista para um canal de TV em 2016, Arlete Hilu disse a todo pulmão: “Pode me chamar de traficante de crianças. Fui traficante de crianças e essas crianças estão maravilhosamente bem”. Para ela, o tráfico era um “trabalho de grande cunho social”: tirava crianças da pobreza e as dava uma vida melhor. 

Muitas vezes, entretanto, isso era feito às custas de muito sofrimento. Não são poucos os relatos, ouvidos até hoje, de sequestros de bebês em maternidades, de recém-nascidos dados como mortos e “enterrados” em cerimônias falseadas, de mães forçadas a entregar os filhos em troca de algum dinheiro ou da promessa de que teriam vida melhor. Para funcionar, o esquema precisava da participação, omissão ou conivência de juízes de Menores, agentes da Polícia Federal, médicos e enfermeiras, advogados etc.  A lista de nomes dos envolvidos, investigados e presos naquela época é imensa. Muitos sequer foram alvos de inquéritos.

Tráfico de pessoas: dados assustadores

Entre as piores formas de migração forçada, o tráfico de pessoas é, porém, um negócio muito rentável, que movimenta por ano US$ 150 bilhões (cerca de R$ 720 bilhões). A maior parcela deste montante advém da exploração sexual das vítimas, cerca de 85%, segundo dados do CNJ (Conselho Nacional de Justiça). São crimes complexos, que exploram vulnerabilidades econômicas, sociais, culturais e psicológicas. Demandam atenção e envolvimento da sociedade para reconhecer e denunciar essa prática.

Por alguma de suas modalidades, o tráfico explora todos os anos 25 milhões de pessoas, o que equivale à soma da população inteira do estado de Minas Gerais (o 2º mais populoso do Brasil, atrás apenas de São Paulo) e dos 5 estados menos populosos do Brasil juntos (Roraima, Amapá, Acre, Tocantins e Rondônia).

Ainda mais cruel, o tráfico de crianças é responsável por um terço de todas as pessoas movidas ilegalmente no mundo. O número absoluto, segundo um relatório de 2021 da ONU, triplicou em relação a 15 anos antes. No auge da pandemia, quando o mundo parou, o tráfico de pessoas era um mercado em ascensão. A própria pandemia abriu as portas para a exploração: sem aulas e com mais tempo online, crianças ficaram ainda mais vulneráveis ao tráfico.

De acordo com o Conselho Consultivo da presidência dos EUA, uma criança se torna vítima de tráfico humano a cada 30 segundos no mundo. O tráfico internacional de bebês para fins de adoção é apenas um dos aspectos desse cenário – a ONU aponta que a exploração sexual de meninas e o uso de meninos para trabalho forçado são aspectos majoritários.

Buscando as origens

Quem nasceu nos primeiros anos da década de 1980 tem hoje por volta de 40 anos. Para muitos, é o tempo que demorou para entender que foram vendidos e começarem a buscar suas origens.

Um dos casos também vem de Israel. Lior Vilk, traficado e adotado em 1985, fez uma longa e incansável procura e acabou encontrando a mãe biológica no fim de 2023, 38 anos depois. O DNA ajudou. Lior nasceu em Joinville (SC) e foi levado do país com menos de 20 dias de vida.

Outro caso é o de uma brasileira nascida na zona norte da capital paulista. Charlotte Cohen-Tenoudji chegou ao Brasil em 2012 determinada a encontrar respostas sobre as suas origens. Pelos poucos documentos que tinha, encontrados numa pasta na casa dos pais adotivos, a jovem, que cresceu na França, sabia ter nascido em 1987.

Ela foi descobrindo informações que a levaram até a família biológica: em 2022, encontrou a irmã de sangue, soube que a mãe fora assassinada 3 anos depois de seu nascimento e que já tinha um nome antes de ser sequestrada: Isabella dos Santos. Deixou Charlotte para trás e adotou o nome de batismo.

Lior e Isabella vivem atualmente no Brasil.

Agulha no palheiro

A saga de pessoas atrás de saber de onde vieram nem sempre termina como os casos de Isabella e Lior. Em 2012, quando a TV Globo exibia a novela “Salve Jorge” em horário nobre, a trama dava lugar a depoimentos reais. Lior e Isabella falaram à audiência da TV, e também foi o caso da jovem Chen Levy Gavillon, também de Israel. A história deles se entrelaçava com a da personagem Aisha, uma brasileira adotada na ficção por pais turcos. Chen veio ao Brasil, investigou, buscou… mas acabou desistindo sem conseguir pistas.

Com documentação forjada, registros inexistentes, papeis e informações envelhecidos com as décadas, são poucas as chances de encontrar as famílias biológicas. Lior advoga firmemente a favor dos exames de DNA. Mas, assim como a pobreza gritante dos anos 1980 no Brasil facilitava a ação de quadrilhas como a de Arlete Hilu, a condição não muito melhor das mães biológicas hoje impede que elas consigam pagar para registrar seu DNA. Há ainda quem, por vergonha ou medo, prefere não procurar os filhos.

A adoção ilegal fruto de tráfico de pessoas é uma cicatriz na história de famílias. Quarenta anos depois, os adotados perdem seu passado, as famílias ficam sem saber se as crianças estão vivas e onde foram parar.

Mas os casos, aparentemente, não ficaram no passado. Em abril de 2023, um bebê de 2 anos sumiu na região metropolitana de Florianópolis (SC) e apareceu em São Paulo com um homem e uma mulher que diziam querer adotá-los.

No fim do ano passado, a PF prendeu um cidadão português acusado de tráfico de bebês: em 40 dias, ele registrou dois bebês como filhos, acionou a Justiça pedindo a guarda unilateral e chegou a levar uma recém-nascida para Portugal.

Sobre o autor

Gabriel Toueg é jornalista e pesquisa o tráfico internacional de bebês para adoção por famílias estrangeiras desde 2012. Atualmente cursa o Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura (PPGCC) da Uniso (Universidade de Sorocaba), com pesquisa sobre a cobertura feita pela imprensa dos casos de tráfico de bebês a partir dos anos 1980. Entre em contato por [email protected].

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