Atualizada às 10h55 de 30.nov.2022
Regulamentar uma Política Nacional Migratória e criar uma coordenação específica para o tema na esfera federal, rever pontos polêmicos da regulamentação da Lei de Migração e voltar ao Pacto Global para a Migração. Essas são algumas das sugestões na área migratória feitas à equipe de transição para o futuro governo Lula, que toma posse em 1º de janeiro de 2023.
As medidas sugeridas ao governo eleito estão em duas manifestações elaboradas por entidades da sociedade civil ligadas à temática migratória: uma da Rede Sem Fronteiras, que congrega diversas instituições do Brasil e do exterior, especialmente de países vizinhos, que lidam com migrações; e outra da ABA (Associação Brasileira de Antropologia), por meio de seu Comitê de Migrações e Deslocamentos.
A temática migratória tem sido discutida no governo de transição dentro do Grupo de Trabalho de Direitos Humanos.
Primeiros cem dias
De acordo com a Rede Sem Fronteiras, algumas das sugestões apresentadas na carta poderiam ser adotadas ainda nos cem primeiros dias da nova gestão. A primeira delas diz respeito à criação de uma Coordenação Nacional de Políticas Públicas para as pessoas migrantes, refugiadas e apátridas, como parte do Ministério de Direitos Humanos.
“Entendemos tal medida como essencial para a garantia de uma coordenação com enfoque nos direitos humanos a qual possa acolher inclusive aos novos fluxos migratórios como os recém-chegados afegãos”, diz a carta.
A criação de um organismo civil responsável por coordenar as ações sobre migrações na esfera federal é uma demanda antiga de instituições ligadas à temática no Brasil. Atualmente elas estão dispersas entre diferentes ministérios, com destaque maior para a pasta da Justiça, que conta por exemplo com a Polícia Federal e o Conare (Comitê Nacional para Refugiados), queprocessa as solicitações de refúgio feitas no país.
Outra sugestão feita pela rede foi a de dar uma maior participação civil na Operação Acolhida e, ao mesmo tempo, reduzir o papel dos militares na iniciativa. Desde que foi criada para gerenciar o fluxo migratório venezuelano no Brasil, a partir de Roraima, em abril de 2018, o Exército é o principal ator estatal atuante, o que tanto é alvo de elogios quanto de críticas por especialistas e demais atores ligados às migrações.
A revisão dos militares na Operação Acolhida também é sugerida pela ABA. “O Comitê considera que migrantes e refugiados não são “caso de polícia”. Questões relacionadas à Migrações Transnacionais, Refúgio e Apatridía são da alçada de especialistas da sociedade civil e não da Polícia Federal ou das forças militares. Neste sentido, sugere-se a desmilitarização urgente da recepção dos imigrantes venezuelanos em Roraima, e propõe-se a substituição da Operação Acolhida, a revisão dos processos de acolhimento de refugiados e a criação de um plano de acolhida emergencial principalmente para os afegãos”, diz o texto.
Ações estruturais e externas
Para além dos cem primeiros dias de governo, a carta da Rede Sem Fronteiras propõe um Pacto Federativo, envolvendo a participação dos estados e municípios, no processo de implementação de uma Política Nacional de Migrações, como previsto no Artigo 120 da Lei de Migração (Lei 13445/2017). Para tal, uma outra sugestão é a realização de uma nova edição da Conferência Nacional de Migração e Refúgio (Comigrar), que aconteceu pela primeira e única vez em maio de 2014.
No decorrer do governo, a rede pede ainda a revisão da regulamentação da Lei de Migração (Lei 13.445/2017, feita pelo decreto 9.199. Embora a legislação migratória atual seja um avanço em relação ao antigo Estatuto do Estrangeiro, a interpretação do governo federal feita por esse decreto é criticada por justamente caminhar na direção contrária da lei.
A carta da ABA também vai na mesma direção, ao propor uma nova regulamentação da Lei de Migração, que esteja mais de acordo com o espírito progressista da normativa, e também demandar a criação da Política Nacional Migratória prevista na legislação atual, mas ainda pendente.
Também a rede sugere a retomada das discussões sobre projetos no Congresso que permitam ao migrante internacional o direito de votar e de ser votado nas eleições oficiais no Brasil. Atualmente esse mecaniso de exercício de cidadania está restrito apenas a brasileiros natos ou naturalizados.
Por fim, o comitê da ABA ressalta a necessidade de uma política de revalidação de diplomas de pessoas migrantes, incluindo aquelas em situação de refúgio.
“Dada a importância de criação de políticas transversais no que tange aos direitos fundamentais,
há necessidade de uma política urgente de equiparação e revalidação de diplomas no âmbito do
MEC e do Ministério de Ciência e Tecnologia. Como indicam as pesquisas do OBMigra e o
perfil socioeconômico dos refugiados no Brasil, elaborado sob a coordenação de Márcio Oliveira
e lançado recentemente pela ACNUR, migrantes e refugiados tendem ocupar posições não
qualificadas no mercado de trabalho devido às dificuldades do processo de revalidação de seus
diplomas, embora apresentem índices educacionais mais altos do que a população brasileira”, completa o documento da ABA.
Acordos internacionais
Na esfera internacional, a Rede Sem Fronteiras recomenda ao próximo governo a adesão do Brasil às convenções da Organização Internacional do Trabalho (OIT), assim como a ratificação da Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e dos Membros das suas Famílias.
Aprovada em 18 de dezembro de 1990 pela Assembleia Geral das Nações Unidas, a convenção contém dispositivos relativos a não discriminação, direitos humanos dos trabalhadores migrantes, direitos adicionais de migrantes documentados, e disposições aplicáveis a categorias especiais de trabalhadores migrantes e membros de suas famílias.
O Brasil discute a adesão à Convenção desde 2010, mas até agora os avanços foram mínimos. O documento é o único dos nove principais tratados internacionais de direitos humanos que ainda não foi firmado pelo governo brasileiro.
Também é pedido pela rede que o próximo governo faça o Brasil retornar ao Pacto Global para a Migração, acordo de governança migratória global costurado pela ONU e firmado em dezembro de 2018. O país foi inicialmente um dos signatários do acordo, mas se retirou dele na primeira medida internacional do governo de Jair Bolsonaro, ainda em janeiro de 2019.
Essas duas recomendações da Rede Sem Fronteiras na área externa estão em linha com os pedidos feitos pela comunidade internacional durante a Revisão Periódica Universal do Brasil junto à ONU.